J.S.Bach - Biografia
1. Um órfão em Eisenach
Os primeiros anos da vida de João Sebastião Bach
não revelam nada de extraordinário. O filho de João Ambrósio Bach e
Maria Elisabete Bach nasceu em um sábado, dia 21 de março de 1685, em
uma família de oito irmãos, quatro vivos até a idade adulta. Seu nome
também nada tinha de especial: foi uma homenagem a Sebastião Nagel,
amigo de seu pai, músico, em visita a Eisenach naqueles dias. Eisenach,
por sinal, era então uma cidade pequena (seis mil habitantes apenas),
sendo famosa apenas por sua conexão com a vida de Lutero.
João Sebastião estava destinado a ser mais um
Bach, uma extensa e ramificada família da Turíngia, ocupando todo tipo
de posição musical na região e fora dela. Seria um músico municipal,
como seu pai, um organista de igreja ou um músico de corte, como outros
de seus parentes. Freqüentou a escola alemã, de vizinhança, e depois a
escola latina, dos cinco aos sete anos, com excelente desempenho. O
comparecimento à escola, por sinal, era obrigatório na Turíngia. O
currículo, inspirado por Comênio, era composto de religião, gramática,
aritmética e línguas.
Esse era o mundo provincial e ordenado do menino João
Sebastião, em uma região da Alemanha que começava a exibir sinais de
prosperidade econômica, algumas décadas depois do fim da Guerra dos
Trinta Anos.
Em 1694, contudo, no espaço de alguns meses, João
Sebastião perdeu sua mãe e seu pai, que foi também seu primeiro
professor. A família foi praticamente desfeita e o registro escolar do
menino João Sebastião revela dezenas de faltas. Em um mundo sem
previdência social, o único amparo dos desvalidos residia na caridade
pública e no círculo familiar.
O menino de nove
anos não teria a proteção de seu pai nem de sua mãe nos anos mais
importantes de sua formação, precisando contar com a generosidade de
parentes. Não poderia sonhar com uma educação mais prolongada,
precisando ganhar seu sustento desde cedo. Teve de viver em lares
alheios e foi acolhido por seu irmão mais velho, João Cristóvão,
organista em Ohrdruf.
A literatura do século XIX nos acostumou com
histórias de órfãos, vindos de famílias destruídas pela revolução
industrial. Não há, contudo, registros posteriores da impressão causada
pela orfandade em João Sebastião. Ele nada falou sobre o assunto.
Estudos modernos mostram o custo psicológico e humano dessa condição,
mas podemos apenas fazer suposições sobre sua superação. |

Bach em sua juventude. Desenho de Mary Greenwalt |
É razoável supor, por exemplo, que a
perda dos pais e da proteção familiar foi um elemento decisivo para
definir a importância que Bach sempre deu à tradição
profissional-familiar. Foi nesse ambiente, afinal, que encontrou forças
espirituais e intelectuais para superar a insegurança e a falta de
referências emocionais. Esses elementos estão sempre presentes, em
diferentes formas e intensidades, em sua carreira musical.
É plausível também conjecturar que a busca da
perfeição harmônica como espelho de um universo mais amplo esteja
conectada à tentativa de superar as imperfeições e os sofrimentos que
caracterizam a vida humana. Um esforço bem típico de recomposição da
ordem e do equilíbrio por parte um menino órfão.
Seja como for, não há registros, positivos ou
negativos, sobre a estada no lar de seu irmão. O episódio da cópia dos
manuscritos musicais é falsamente óbvio. Não sabemos por que estavam
proibidos, não sabemos por quanto tempo aconteceu, não sabemos se João
Cristóvão era rígido e se reagiu com severidade ao fato. Sabemos apenas
que João Sebastião tinha sede de conhecimento, mas isso também admite
uma leitura trivial. Ele tinha consciência de que precisava ganhar seu
sustento sozinho, estando na vida por sua única conta.
Apenas um fato é digno de nota na relação com seu
irmão, que também morreu cedo, em 1721, aos 49 anos de idade. Cristóvão,
em 1713, deu o nome de João Sebastião, que então já era o famoso
organista em Weimar, a um de seus filhos. Sem dúvida alguma, um
testemunho respeitoso do irmão mais velho ao caçula.
Essa combinação da necessidade de afirmação profissional com a
busca de equilíbrio emocional em sua tradição familiar explica
facilmente sua sede de conhecimento e o envolvimento com o mais complexo
dos instrumentos musicais, o órgão de tubos – ao mesmo tempo ganha-pão e
instrumento de afirmação artística.
Esse foi o início do caminho que o levou à
posição, ao mesmo tempo, de consultor na construção e reforma de órgãos,
de instrumentista sem par e criador sem igual. A música, a partir do
órgão, representava para ele um universo único, não havendo marcos
limítrofes entre o compositor, o intérprete e seus instrumentos. O
primeiro sinal da “ambição cósmica” de Bach, apontada por Edward Said.
2. Excelência escolar
A melhor prova de que a orfandade foi ao menos
compensada pelo apoio familiar e pela casa de seu irmão é o desempenho
escolar nos anos em Ohrdruf. Os dois irmãos, Jacob e João Sebastião,
foram matriculados do Liceu Gleichense, escola fundada em 1560 por Jorge
II, conde de Gleichen. João Sebastião terminou a tertia em 1697, em
primeiro lugar na turma, mesmo sendo o mais jovem, com 12 anos de idade.
Na classe seguinte, a secunda, foi o segundo colocado e chegou à prima
com apenas 14 anos, quatro anos abaixo da média normal ao tempo.
Ele completou sua educação fundamental em oito
anos, uma realização desconhecida em sua família – todos os seus irmãos
deixaram a escola na tertia, aos 14 anos. Ao mesmo tempo, também ganhava
dinheiro como membro do coro escolar, que recebia estipêndios para
cantar pelas ruas da cidade três vezes por ano. Data dessa época também
seu contato cotidiano com o patrimônio de melodias e poemas dos hinos
luteranos.
No Liceu, estudava-se latim e grego, teologia
baseada na obra de Leonard Hutter e história romana, lida em Cornélio
Nepos, Cícero e Curtius Rufus. Comédias de Terêncio e as obras
históricas de Johannes Buno faziam parte do currículo e, ao longo de
todos os anos, matemática.

Bach e seu colega
Jorge Erdmann no caminho de
Luneburg.
Desenho de Mary Greenwalt |
João Sebastião não
completa a prima em Ohrdruf. Junto com seu colega Jorge Erdmann seguem
para a Escola de São Miguel em Luneburg, no ano de 1700, certamente
frustrado pelo fim do pagamento aos coristas do Liceu. Uma série de
conexões entre a família Bach e os responsáveis pelo Liceu permitirá o
acesso à escola de Luneburg.
Foi uma decisão pessoal, portanto, que levou
o primeiro membro da família Bach a sair da Turíngia e a ser um dos
primeiros a completar a escolaridade necessária para o acesso ao ensino
superior.
Trata-se de um sinal de que João Sebastião
começava a buscar exemplos fora de seu círculo familiar, onde
prevaleciam músicos municipais, cuja formação profissional seguia o
modelo medieval do aprendizado junto a um mestre de prestígio.
Não há dúvida – e as biografias escritas sob a
orientação de seus filhos afirmam isso – de que João Sebastião teve como
primeiro professor formal o irmão João Cristóvão, de acordo com as
técnicas do tempo – o ensino pelo exemplo e pela cópia de composições
dos grandes mestres. A experiência na escola de São Miguel em Luneburg,
contudo, abriria outros horizontes para o rapaz de 15 anos. |
A imersão musical provida por seu
meio social e familiar foi complementada por uma formação acadêmica
complexa, fruto das reformas educacionais promovidas pelo
protestantismo. Começou em Luneburg a biografia do músico excepcional
que também conhece línguas, história sacra e profana, matemática,
lógica, etc. Um homem que toca todos os instrumentos e também conhece
sua mecânica.
Por fim, ele certamente começou a compor sob João Cristóvão,
mas há pouquíssimos registros de suas primeiras composições.
Primeiro,
porque compositores razoáveis se livravam desse material incipiente na
idade madura. C.P.E Bach registra um desses episódios em que descarta
suas obras primeiras por meio da crítica das chamas. Segundo, vazados na
tablatura alemã, não foram preservados em sua maioria.
Ainda assim, Wolff entende que pelo menos
três exemplos podem ser destacados: os exemplares dos chamados Corais
Neumeister em que uma composição de Pachelbel é “terminada” por outro
compositor, ou seja, J.S.Bach. |

Bach
Jovem - por J. E. Rentsch, the Elder |
Seriam os primeiros registros da
atividade do artista: uma espécie comentário a Pachelbel. As chamadas
Fughettas podem ser até anteriores, mas não trazem a marca da
originalidade composicional. Em Jesus minha Alegria (BWV 1105) Como
Jesus Cristo na Noite (BWV 1108) e Jesus amado do coração (BWV 1093)
Bach começa a “ir além de seu escopo” justamente no território – o coral
protestante – em que permanecerá até o fim.
3. Desafiando os mestres
A última fase da escolaridade formal de João
Sebastião, no sentido moderno do termo, começa em março de 1700 com sua
passagem pela Escola de São Miguel, em Luneburg. Fundada no século XIV
como apêndice de um mosteiro, a escola seria ampliada e ocuparia suas
dependências após a Reforma. Mais tarde ganharia um anexo especial no
século XVI: uma academia de nobres (Ritter Academie). João Sebastião
estudava de graça na escola, com uma espécie de bolsa para musicistas.
No seu caso, membro do coro de maior qualidade da Escola.
O currículo ampliava o conteúdo das tradicionais
escolas latinas, compreendendo religião, lógica, retórica, latim, grego e
aritmética. Além disso, a Ritter Academie, mesmo tendo corpo de alunos
separado, podia aceitar membros da escola de São Miguel como pajens e
ajudantes dos estudantes nobres. Com isso, também estes tinham acesso às
aulas de equitação, esgrima e línguas modernas como francês e italiano.
Esse contato com a Ritter Academie, por sinal, é a
única explicação para o aprendizado precoce de francês e italiano de
João Sebastião. É bem provável também que tenha sido em Luneburg que ele
estabeleceu as primeiras conexões com membros da aristocracia alemã,
uma influência quase invisível, mas sempre presente em momentos
importantes de sua carreira musical. Mesmo um órfão pobre como ele,
estudando graças à caridade, teve contato desde jovem com o universo
social dos que estavam vários degraus acima na escala social.

Placa na igreja de São Miguel em
Lüneburg com informações da presença de Bach no
coro por dois anos quando era menino. |
Em Luneburg,
contudo, irá emergir não o acadêmico, mas o organista de rápida carreira
e afirmação musical. As biografias do início do século XVIII talvez não
dispusessem ainda do tropos do ‘jovem prodígio’, mas é difícil
classificar de outra forma os fatos transcorridos entre sua entrada na
escola, em 1700, aos 15 anos de idade e sua formatura em 1702, sendo
logo escolhido como organista da cidade de Sangerhausen e músico de
corte em Weimar em 1703.
É nesse curto período de tempo que completa
várias viagens a Hamburgo para ouvir Jan Adam Reinken. É também
rapidamente integrado ao círculo de organistas de Lüneburg, onde se
destacava George Böhm e participa das atividades musicais do castelo de
Lüneburg, residência do Duque de Celle, patrocinador da cultura, da
música e da dança francesa na Alemanha.
Coletâneas de obras organizadas nesse tempo
por membros da família Bach mostram por fim como era vasto o patrimônio
artístico acumulado e, mais importante, em circulação nos meios
freqüentados por João Sebastião. |
Todos esses fatos revelam o rápido
amadurecimento artístico e humano do órfão que saiu de Ohrdruf. Formado
em 1702, presta audição em Sangerhausen, sendo aprovado por unanimidade,
perdendo o posto apenas por influência do soberano feudal da cidade.
Passa um tempo como músico de corte em Weimar,
desde o início do ano de 1703 e logo em junho, ainda aos 18 anos de
idade, é chamado, na qualidade de consultor, para testar o novo órgão de
Arnstadt. Como lembra Wolff, a família Bach dispunha de vários nomes
mais velhos e mais experientes para essa comissão prestigiosa de uma
cidade que ficava em seu território tradicional. Ninguém questionou os
méritos do jovem João Sebastião.
O recital-teste em Arnstadt tem lugar na festa de
São João, dia 24 de junho de 1703 e João Sebastião merece um comentário
favorável do consistório e recebe não apenas pela consultoria técnica,
mas também um pagamento pela exibição musical.
Não custa reforçar. Aos 18 anos, mal tendo completado seus
cursos preparatórios para a Universidade, João Sebastião é convocado a
dar pareceres técnicos sobre órgãos e estabelece ligações que se
revelarão estáveis com mestres da estatura de Reinken e Böhm. Algo havia
ali, sem dúvida.
Wolff não se estende muito sobre as obras que
podem ser atribuídas a esse período, como os dois caprichos para teclado
(BWV 992 e 993) e os prelúdios em dó maior (BWV 531), sol maior (BWV
535) e ré maior (BWV 549A). Registra, contudo, a perfeita adequação da
Tocata de Fuga em ré menor (BWV 565) ao órgão de Arnstadt. Essa peça
representaria, em vários sentidos, a emergência do jovem e brilhante
organista, testando ainda seus poderes na polifonia, mas já capaz de
produzir uma obra cuja fama se estenderá por séculos.
A Tocata e Fuga em ré menor, portanto, não é a
trilha sonora de algum homem maduro amargurado com a vida ou de um
cérebro turvado por visões fantásticas, mas de um rapaz de 18 anos,
confiante, enviando sua mensagem aos Mestres que o cercavam: aqui estou
eu!
4. Jovem em Arnstadt
O primeiro emprego formal de João Sebastião é como
organista da cidade de Arnstadt. Era a cidade mais antiga da Turíngia e
sua carta de direitos e franquias datava de 1266. No século XVIII, era a
capital de um Principado, governado pelos condes de Schwarzburg, e
possuía pouco menos de 4 mil habitantes. Bach aceitou formalmente o
posto em 9 de agosto de 1703, com responsabilidade pelo órgão da “Igreja
Nova”.
Para um músico de apenas 18 anos, o posto era
excepcional. Seu salário de 50 florins, somados a outros benefícios, era
três vezes maior que o valor recebido como funcionário eventual da
corte de Weimar. Ele tinha livre acesso ao instrumento e uma escala de
trabalho pouco pesada, quando comparada à dos demais organistas da
cidade. Além disso, o superintendente das igrejas, Johann Gottfried
Olearius, era um eminente pastor e teólogo, conhecido da família Bach e
certamente uma fonte de instrução literária e religiosa para João
Sebastião.
As funções contratuais de João Sebastião incluíam o
acompanhamento dos corais cantados pela congregação, a execução de
prelúdios corais, prelúdios e poslúdios e peças livres nas Vésperas. Em
pouco tempo, contudo, ficaria claro que o Consistório exigia muito do
organista e que o organista era um indivíduo independente demais.
Tome-se o célebre evento do fagotista Geyersbach. João Sebastião não se
entendia com os coristas e instrumentistas, quase todos mais velhos do
que ele. Foi fácil passar das críticas à briga de rua. Ao longo da
polêmica, foram ouvidas as críticas ao organista que fazia “variações
imprevistas” e não oferecia “música de concerto”. João Sebastião
respondeu que o faria se a cidade contratasse um diretor musical que
impusesse disciplina ao coro e aos músicos.
Wolff, na verdade, suspeita que João Sebastião já
fazia seu jogo duplo, trabalhando como músico no castelo dos condes e
negligenciando suas funções como organista da cidade por falta das
condições que ele julgava necessárias. É a esse ponto da biografia que
pertencem os episódios da “moça estranha no coro” e da espada. Wolff,
sempre inteligente, lembra que as mulheres não eram tão proibidas assim
de participar de atividades musicais nas igrejas. A figura das
adjudanten oferecia essas oportunidades.
No
somatório desses atritos, João Sebastião decide novamente sair da
Turíngia para empregar-se na cidade imperial de Mülhausen e também a
casar-se, com a prima Maria Barbara, em 17 de outubro de 1707, aos 22
anos.
A liberdade artística, a proximidade da
corte dos Condes de Schwarzburg e o amplo público - que podia chegar a
mil e quinhentas pessoas na Igreja Nova, abriram um novo período
criativo para João Sebastião.
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Família
Bach |
Data desses anos obras autônomas
como os prelúdios BWV 566, BWV 535 e BWV 921, obras relacionadas a temas
de Reinken, como a BWV 965 (cuja fuga é excepcional), alguns primeiros
prelúdios do Orgelbuchlei, como “Ich ruf zu dir” e certamente a
Passacaglia e Fuga, BWV 582.
O grande evento artístico-biográfico do
período em Arnstadt foi, contudo, a viagem a Lubeck, para ouvir
Buxtehude. Pelo fato em si – dez dias de caminhada, cobrindo 250 milhas -
ela traz a marca da juventude aventureira de João Sebastião; pelo
testemunho de admiração, outro traço notável de sua vida: o interesse
pela obra alheia e a rápida absorção de modelos e idéias. A experiência
em Lubeck, que se estendeu por quatro meses, em vez das quatro semanas
prometidas ao Consistório de Arnstadt mostrou-se fundamental não apenas
para a obra organística, onde o impacto é evidente, mas também para a
obra vocal, com que certamente teve contato em seus meses em Lubeck.
Trata-se de mera especulação se João Sebastião
compôs cantatas ainda em Arnstadt. É certo, porém, que ao chegar a
Mülhausen, depois da experiência em Lubeck, ele criaria evidentes obras
primas: a BWV 4, “Cristo jaz nos braços da morte” e a BWV 106, “O tempo
de Deus é o melhor dos tempos”.
5. Carreira meteórica ou busca do pão?
Os primeiros anos da carreira profissional de João
Sebastião revelam uma incomum mudança de posições, sempre em direção
ascendente e motivada por seu prestígio público. O relativamente elevado
salário pago pela cidade de Arnstadt não o segurou por muito tempo e
quando falece o organista da Igreja de São Blásio, em Mülhausen, João
Sebastião foi convidado a assumir o posto e aprovado, como único
candidato, em 24 de maio de 1707. Mülhausen não lhe ofereceu um posto
qualquer.
Era a segunda maior cidade da Turíngia, uma cidade
livre imperial, livre da sujeição a soberanos feudais, com muitos mais
recursos. O posto de organista da cidade exigia também a composição de
música vocal. É bem provável, por sinal, que a BWV 4, “Cristo jaz nos
braços da morte”, tenho sido composta como prova de teste.
O breve período em Mülhausen – pouco mais de um
ano – é marcado por notáveis eventos profissionais. Para começar, João
Sebastião conseguiu impor o mesmo salário de Arnstadt, acrescido de
várias franquias. Recebia adicionais pelo trabalho em outras igrejas da
cidade e o fato de não dispor de uma residência funcional era amplamente
compensado pelas atividades musicais em uma cidade mais populosa. João
Sebastião aceita, inclusive, dois alunos.
O período em Mülhausen também produz o primeiro
registro formal da atividade de João Sebastião como ‘consultor’ para a
construção e reforma de órgãos. Com poucos meses de atividade consegue
da cidade a reforma do órgão de São Blásio, um projeto caro – 230
táleres – e que estenderia por muitos meses.
Por
fim, chamado a compor obras vocais, terá a única cantata impressa de sua
vida - BWV 71, “Deus é meu Rei”. Composta para a inauguração do
Conselho Municipal, “Deus é meu Rei” foi impressa muito antes que
Haendel e Teleman tivessem a mesma chance. Não deixa de ser irônico,
portanto, que nenhuma outra de suas obras para voz tenha sido impressa
em vida.
O impacto da BWV 71 pode ser também medido
pelo fato de que o Conselho de Mülhausen o convidaria para compor peças
para a mesma ocasião em1709 e 1710, quando já estava em Weimar. Também
pode ser atribuída a esse período a cantata 131, “Das profundezas”,
outra obra prima.
O prestígio crescente de João Sebastião pode
ser facilmente avaliado pelo processo de saída de Mülhausen. Em meados
de 1708 é convidado para reinaugurar o órgão de Weimar, em uma audiência
perante o Duque Guilherme Ernesto. Terminado o evento, é imediatamente
convidado pelo Duque para ser Músico de Câmera e Organista da Corte, com
salário de 150 florins. |

Café
Haus de Bach em Leipzig |
Bach aceita e comunica ao Conselho de Mülhausen que, mesmo atônito, lhe concede a demissão.
O rompimento de contrato não deixou mágoas. Bach
indica seu sucessor, o primo Ernst Bach, compromete-se a completar a
reforma do órgão da cidade e, em 1735, a cidade contratará, para o mesmo
posto, seu filho Johann Bernhard Bach. Em visita à cidade, João
Sebastião testa o órgão “sem cobrar nada”.
O período em Mülhausen é muito curto para que lhe
possa ser atribuído um impacto maior sobre a obra do Mestre. Compôs ali
algumas obras primas importantes, mas ainda dentro de estilo corrente.
Ainda assim, quase por acaso, facultou a redação de um dos poucos
documentos pessoais pelo seu punho, o memorial em que pede demissão.
Nele aparece a expressão que se tornará clássica –
“uma bem regulada música de Igreja” – informa que a cidade está longe
desse ideal e a admite que seguirá para Weimar por buscar melhores meios
de sustento.
Nesses anos, aos vinte e poucos, João Sebastião é
um músico de sucesso, recém casado, com ambições bem concretas e talvez
fascinado com o extemporâneo convite do Duque de Weimar.
6. Weimar e o Músico Ilustrado
Para um músico de 23 anos, o posto em Weimar –
organista e músico de corte – representava um primeiro auge em sua breve
carreira. Em termos populacionais, a cidade não era grande, mas o
ducado era uma entidade poderosa e culturalmente relevante. Seus
soberanos – tratava-se de uma monarquia dual – mantinham uma longa
tradição de mecenato e, naquele início de século XVIII, eram homens de
cultura e autêntico interesse em música. Os músicos da corte também eram
de alto nível, dos instrumentistas à direção musical, comandada pelos
Drese, pai e filho.
João Sebastião tinha, portanto, amplas
oportunidades para um diálogo com colegas de prestígio, para o
conhecimento da música contemporânea e para a criação musical. Era
responsável pela música para órgão e data desse período a maioria de
suas composições para o instrumento. Tinha também a atribuição eventual
de compor música vocal, mas, sem compromisso com o calendário litúrgico,
suas cantatas de Weimar são pensadas para ocasiões gerais, exibindo
considerável variação temática. É o caso típico da BWV 54, “Resisti ao
Pecado”, , da BWV 199, “Meu coração nada em sangue” ou da BWV 156, “Rei
do Céu, sê bem vindo”.
É em Weimar que emerge, a partir do organista
prodígio, o Músico Ilustrado. Dois eventos de crucial importância
pertencem a esse momento. O primeiro é o projeto do Pequeno Livro para
Órgão, que deveria cobrir, com seus prelúdios, todo o calendário
litúrgico de melodias corais. Ele não representa exatamente uma novidade
em termos formais, mas exibe características únicas – a qualidade e a
economia formal de suas construções, nunca maiores que duas páginas de
partitura.
O Pequeno Livro para Órgão une polifonia e
comentário teológico, oferecendo sempre uma visão peculiar sobre cada
melodia coral. Para usar a expressão de Albert Schweitzer, nasce o
“músico poeta”, que eleva a construção musical de imagens poéticas a um
novo patamar expressivo. Como é do conhecimento geral, o Pequeno Livro
para Órgão é um projeto inacabado: apenas 46 peças foram compostas e é
possível que algumas delas tenham sido acrescentadas posteriormente.
Ficou inconcluso por falta de tempo, certamente, e também porque o
projeto de uma música para órgão que misturasse elaboração polifônica e
comentário teológico continuaria por toda a sua vida. No Pequeno Livro
para Órgão estão, em germe, as linhas consagradas, mais tarde, na Missa
para Órgão, nos Dezoito, nos corais Schubler: polifonia a serviço de
idéias e emoções.
O segundo evento de crucial importância é a descoberta de Vivaldi.
Os Duques de Weimar eram soberanos mais
globalizados e com recursos suficientes para estar a par das novidades
musicais em escala européia. Poucos meses depois da publicação em
Amsterdam, o Opus 3 de Vivaldi já estava à disposição da corte ducal e
João Sebastião, um hábil violinista ele mesmo, podia tocar as maravilhas
de Veneza. O processo de absorção e transformação dos modelos italianos
é rápido e intenso. Começa com a transcrição dos concertos para o
teclado, passa pelas primeiras experiências de composição ao estilo
italiano e chega, ainda em Weimar, às primeiras versões das sonatas e
partitas para violino solo. Sob o estímulo da música de Vivaldi, João
Sebastião simplesmente deflagra várias correntes criativas, de profundo
impacto sobre sua arte e sobre o futuro. Desse ponto de vista, Weimar
parecia um paraíso. João Sebastião intensifica sua atuação profissional
como consultor na construção e teste de órgãos, começa a firmar
reputação como músico para o teclado e encontra no mais novo dos Duques
um apoio sólido na corte.
Nem tudo, porém, eram flores. Após um novo ápice –
a nomeação como Mestre de Concertos, em março de 1714 – virão os
atritos, a prisão e a transferência para Coethen, uma posição vagamente
parecida com uma aposentadoria.
7. Weimar: carreira musical e política de corte
O prestígio crescente de João Sebastião bem pode
ser avaliado pelos próprios eventos de 1714. Convidado a dar seu parecer
sobre o projeto de construção de um novo e espetacular órgão na Igreja
de Nossa Senhora em Halle (então território prussiano), merece todas as
deferências possíveis, como a hospedagem no melhor hotel e reembolso de
todas as despesas (inclusive 18 groschen em cerveja ou 32 canecas) e
termina sendo convidado a ocupar o posto de organista, sem sequer
apresentar sua candidatura.
Como resposta, a corte de Weimar, em março de
1714, o nomeia Mestre de Concertos, com a atribuição de compor uma
cantata por mês e comandar a orquestra da corte. Tudo isso, antes dos 30
anos de idade.
Havia, porém, o outro lado da moeda. A corte ducal
registrava devidamente toda essa agitação profissional, mas não mudava a
ordem de precedência entre seus funcionários musicais. Bach ganhava
mais que os dois Drese, pai e filho, mas seguia em posição subalterna no
organograma da corte. Além disso, quanto o Mestre de Capela João Samuel
Drese faleceu, sua substituição passa a ter outro planejamento: Teleman
seria convidado para ser o Mestre de Capela Geral de todas as cidades
governadas pelos Duques de Saxe-Weimar.
Ou seja, João Sebastião podia ser um talento
reconhecido, mas questões como fidelidade ao posto (como demonstrara a
família Drese em Weimar) e renome ‘nacional’ (caso de Teleman) também
tinham seu peso.
Não foi a única lição que João Sebastião aprendeu em Weimar.
Pertence também ao período seu confronto com o organista francês Louis
Marchand, organizado em Dresden em 1717
O convite da corte
de Dresden e a fuga de Marchand, que evitou vergonhosamente a
competição com Bach, podem ter feito muito por sua fama e pela sua
confiança em sua posição como instrumentista, mas foram acompanhadas por
mensagens igualmente importantes.
Em Dresden, por exemplo, ele certamente
ficou a par da escala modesta em que trabalhava. Heinichen, vice-mestre
de capela da Corte Eleitoral, ganhava 1200 táleres por ano, mais de três
vezes seu salário em Weimar ou Cothen. Antonio Lotti e sua esposa
cantora recebiam mais de 10 mil táleres pela composição e performance de
óperas italianas. |

Monumento
de Bach em Eisenach |
Por sinal, sejam lá quais foram as
razões pelas quais Bach jamais compôs música para ópera, essa decisão
foi tomada com pleno conhecimento de suas conseqüências financeiras e
profissionais. Não escrever ópera era ficar fora do circuito fashion da
música nas cortes alemães e fora também do ‘big money’.
A decisão de permanecer em Weimar e recusar o
convite para Halle, além das questões financeiras, foi, assim, a decisão
de aprofundar a carreira como compositor de todo tipo de música e
superar a imagem de organista, por mais bem sucedido que tenha sido esse
caminho profissional. São anos de produção de obras primas em todos os
campos. As cantatas 182, 12, 21, 63, 31, 161 e 61 começam a explorar o
gênero da moderna cantata alemã, criada por volta de 1700, mesclando
todos os gêneros copiados do madrigal italiano – corais, coros,
recitativos, árias, peças orquestrais, dando ao compositor amplas
oportunidades de explorar as relações entre poesia e música.
Weimar também vê o nascimento das grandes obras
para o órgão e teclado: 538, 540, 541, 524, a Fantasia Cromática e o
início do WTC1. E a lista conhecida pode ser ínfima: com base na
comparação entre o papel fornecido pela corte a João Sebastião e o
material conhecido, a perda das composições do período pode chegar a
50%! Esse período na vida artística de João Sebastião termina marcado
pelo peso das políticas de corte para a música. Os planos para atrair
Teleman como super mestre de capela envolviam a transferência de Bach
para a corte de Cothen, cujo príncipe passou a ser cunhado do Duque
Ernst August. Ou seja, a posição de Mestre de Capela seria negada a Bach
em Weimar, mas ele seria “promovido” para a corte de Coethen, com
salário maior e onde não seria subordinado a Teleman.
Os detalhes do arranjo não são conhecidos, mas é
certo que Bach não gostou. Suas demandas junto ao Duque de Weimar
chegaram ao ponto de uma discussão pública com altos funcionários. A
insistência em uma pronta demissão levou, afinal, ao célebre período na
prisão. Um sinal claro de que João Sebastião nem se submetia às modas
musicais da época, nem tampouco se calava diante dos meandros da
política de corte.
8. Interlúdio em Cöthen
A passagem a Cöthen mostrou-se uma solução
adequada após os conflitos na corte de Weimar, mas o prestígio do
kapellmeister Bach junto ao príncipe Leopoldo Augusto não escondia os
horizontes mais restritos da nova posição. Em termos humanos e
estéticos.
Cöthen era uma cidade pequena, com menos de dez
mil habitantes, capital de um principado preponderantemente agrícola,
conhecido humoristicamente como “a vaca Cöthen”, um trocadilho
inevitável em alemão. A corte de Leopoldo Augusto gastava bastante com
música, mas era um principado calvinista, sem uso para música sacra
vocal. As cantatas do período foram sempre dedicadas a eventos festivos,
como o aniversário do príncipe. É o caso das versões BWV 66a, 134a,
173a, e 184a. A posição em Cöthen também marcaria o fim da carreira
oficial de João Sebastião como organista. Tocar e compor para o órgão
jamais voltaria a ser uma obrigação profissional.
Como um largo rio obrigado a correr por um leito
mais estreito, a produção musical do período ganha em profundidade. João
Sebastião começa a explorar os limites das formas correntes da música
instrumental.
São os anos das partitas e suítes para violino e
cello solo, das Suítes Francesas, muito provavelmente das Suítes
Orquestrais e dos primeiros concertos para teclado e da música que há de
compor o ciclo dos Concertos de Brandenburgo.
A qualidade e a ambição
das obras em compostas em Cöthen muito devem também ao virtuosismo dos
músicos que compunham a orquestra da corte. Por um golpe de sorte,
Leopoldo teve a chance de contratar muitas das estrelas da orquestra
prussiana, desfeita quando Frederico Guilherme I (o pai de Fred II)
assumiu a coroa prussiana em 1713.
Apesar do ambiente favorável, que fez João
Sebastião confessar em uma carta posterior o desejo de permanecer “para
sempre” ao lado do príncipe Leopoldo, a realidade era bem menos estável.
O compromisso do soberano com as despesas
musicais dependia das contas do Principado, que seriam afetadas por uma
disputa de caráter feudal com a ex-regente, mãe de Leopold, pela criação
de uma guarda palaciana e por uma nova esposa, cuja ‘mesada’ era maior
que todo o orçamento da orquestra. Com o tempo, João Sebastião não
conseguia mais autorização para substituir todos os músicos que deixavam
Cöthen em busca de outras posições. |

Bach
Museu em Eisenach |
A família Bach, por fim, era uma
família luterana em um principado calvinista. O único local de culto era
controlado, seu pastor nem sempre recrutado com critério elevado e a
escola luterana não tinha condições de manter uma elevada qualidade de
ensino. Essa escassez de meios humanos e materiais teria outra
conseqüência trágica: o arquivo público do principado simplesmente
desapareceu no curso de sua absorção política pelo Reich e com ele toda a
produção musical de Bach oficialmente incorporada ao acervo documental
da corte.
Com base em estimativas grosseiras, calculadas em
função dos gastos com encadernação de volumes de partituras, Christoph
Wolff considera que cerca de 200 composições de João Sebastião, entre
música de câmara e cantatas festivas podem ter sido perdidas.
A estreiteza da vida em Cöthen teve também
impactos na vida pessoal de João Sebastião. O isolamento geográfico
estimulava as viagens e por duas vezes ele acompanhou Leopoldo em suas
idas à estação termal de Carlsbad. Além de aproveitar as fontes termais,
os nobres exibiam suas comitivas e nasceu a tradição de realizar
festivais musicais. Em tais eventos, João Sebastião teve a rara
oportunidade de apresentar suas composições para um público mais amplo.
No retorno, porém, de uma das viagens a Carslbad,
João Sebastião encontrará sua casa afetada pela tragédia: a morte de sua
esposa, Maria Bárbara Bach.
No curso de outras viagens, dessa vez para
recrutar músicos para a orquestra de Cöthen, ele conhecerá uma jovem
soprano da família Wilcken, outro clã musical relacionado aos Bach. Por
sua recomendação, Ana Magdalena Wilcken é contratada, por um alto
salário, como cantora da corte de Leopold August. Pouco tempo depois de
instalada em Cöthen, Ana Magdalena recebe o pedido de casamento do
Mestre de Capela, dezesseis anos mais velho, e diz sim.
João Sebastião casou-se com sua diva e Ana
Magdalena deixou uma promissora carreira lírica para se casar com o
maestro.
Com o passar dos anos, mais e mais a estada em
Cöthen se parecia a um interlúdio. As crescentes dificuldades fiscais da
corte, a saúde instável de Leopoldo, a falta de horizontes para os
filhos que cresciam começavam a pesar e João Sebastião começa novamente a
procurar emprego. Dessa vez, competirá por uma posição de natureza
completamente nova, com prestígio secular e caráter semi-acadêmico.
Precisará provar que não é apenas um compositor, mas um Mestre.
A resposta a essa transição profissional,
intelectual e musical é, nada mais, nada menos, que o primeiro volume do
Cravo Bem Temperado.
9. Leipzig: a definição de uma personalidade artística
Após servir por mais de uma década a soberanos
feudais em Weimar e em Cöthen, João Sebastião escolheu um rumo diferente
para sua carreira. A disputa pelo posto de Kantor de São Tomás não foi
simples nem fácil, Bach foi a terceira escolha do Conselho Municipal.
Essas idas e vindas, contudo, nada tinham de fortuitas. O kantorato em
São Tomás era o de maior prestígio em todas as terras germânicas, a
produção musical na cidade estava em discreta concorrência com a corte
eleitoral em Dresden e o Conselho Municipal sempre se dividia sobre a
natureza da função – acadêmica ou musical.
Não é por acaso, portanto, que o antecessor de
Bach em São Tomás, Johann Kuhnau, formado em Direito pela Universidade
de Leipzig, fosse músico e polímata. A posição de Kantor em São Tomás
requeria uma dimensão intelectual própria, tanto pela representação da
importância cultural da cidade, como pelas múltiplas relações com a
comunidade universitária.
Por fim, a posição em Leipzig exigia um evidente
compromisso pedagógico e o Kantor era, em tese, responsável pelos vários
tipos de instrução humanística oferecidos pela Escola de São Tomás.
Há várias
indicações de que João Sebastião encarou esse desafio de uma forma ao
mesmo tempo típica e espetacular. Bach não teve condições econômicas de
prosseguir em sua educação formal e a falta de um título universitário
certamente pesou no processo de seleção do novo Kantor, mas ele
respondeu de forma categórica a qualquer dúvida que pairasse sobre sua
condição mista de músico, intelectual e professor.
Nas semanas que antecederam sua escolha e
nomeação consolidou sua obra anterior em três documentos exemplares: o
Pequeno Livro para Órgão, a Genuína Instrução e o Cravo bem Temperado,
cujas páginas iniciais datam precisamente dos anos 1722-1723.
No Pequeno Livro para Órgão “o iniciante no
órgão recebe instruções para o desenvolvimento de um coral em muitas
maneiras e ao mesmo tempo adquire facilidade no estudo do pedal uma vez
que nos corais nele contidos é tratado como totalmente obbligato. Para o
Louvor de Deus e para a instrução do próximo” |

"Bach
Organ" Em ThomasKirche, Leipzig. |
A Genuína Instrução (um novo nome
para a coleção de peças escritas para a formação de W.F. Bach) se define
como “onde os amantes do teclado e especialmente aqueles desejosos de
educação têm um claro caminho não somente para (1) aprender a tocar
claramente em duas vozes, mas também progredir (2) e lidar corretamente e
bem com três partes obbligato; e ainda mais, ao mesmo tempo não somente
dispor de boas inventiones, mas desenvolver bem as mesmas e, sobretudo,
atingir um estilo cantante no tocar e ao mesmo tempo adquirir um forte
aperitivo da composição”.
Por fim, o Cravo Bem Temperado é apresentado como
“prelúdios e fugas em todos os tons e semitons, tanto no que concerne a
tertia major ou Do Re Mi como no que concerne à tertia minor ou Re Mi
Fa. Para o uso e proveito da juventude musical desejosa de aprender
assim como passatempo para aqueles já hábeis no seu estudo”.
Se o Cravo Bem Temperado representa ou não um
projeto iluminista é questão disputada. Não se trata, como se sabe, da
defesa do temperamento igual e nem foi apresentado em um formato
científico, descrito em detalhes em um tratado. Também não representa
uma inovação musical ou intelectual. A idéia, para usar um termo
corrente, “estava no ar” desde o início do século XVIII.
A diferença evidente, portanto, com esforços
anteriores de compositores e teóricos não está na qualidade intelectual
da fórmula matemático-musical empregada, nem em uma justificação
teórica. Está na sua genial qualidade artística.
Esta qualidade artística do
Cravo Bem Temperado é que permitirá o salto intelectual da música na
direção de um sistema de temperamento racional, abrindo o caminho que
lhe facultará explorar todas as modulações possíveis e, portanto, todas
as combinações de afetos imagináveis.
Não se pode, contudo, perder de vista o mecanismo pelo
qual esse salto será dado: sua surpreendente intenção pedagógica. Aqui
talvez esteja a chave da idéia iluminista no Cravo Bem Temperado: a
demonstração de que a beleza e a arte podem estar ao alcance de todos,
livres de segredos e hermetismos. |

Túmulo
de Bach no altar de Thomaskirche. |
O homem que chega à cidade de
Leipzig em 1723, implicitamente desafiado a ser artista e professor,
músico e mestre, não leva em suas mãos um Tratado em muitos volumes, mas
uma Obra, que, ao mesmo tempo, é bela e ensina.
Sem outras linhas introdutórias do que a intenção
de ser destinada "ao uso e proveito da juventude musical desejosa de
aprender assim como passatempo para aqueles já hábeis no seu estudo”.
10. Leipzig: o kantor da Igreja de São Tomás
Assim como a chegada ao kantorato de São Tomás foi
precedida de uma notável consolidação de sua obra musical,
materializada na criação do primeiro volume do Cravo Bem Temperado, seus
primeiros anos de atividade musical em Leipzig assistiram a um prodígio
criativo único na história da arte. De qualquer arte.
O ofício de Diretor Musical da Escola de São Tomás
exigia a execução de música em várias ocasiões religiosas, em vários
lugares diferentes, e não se imagina que seu titular apresentasse apenas
as suas composições. Não seria humanamente possível e não era a prática
histórica em nenhuma instituição semelhante. O Kantor poderia
privilegiar suas composições, era suposto que as apresentasse, mas podia
contar também com um arquivo extenso, com músicas contemporâneas ou
não, dependendo das condições materiais de cada instituição.
Bach chegava a Leipzig, contudo, após anos
afastado da composição de música litúrgica, por conta das restrições
religiosas em Cöthen. Não tinha um arsenal extenso de onde retirar suas
peças. Sabia também que precisava firmar sua reputação como compositor
em uma arena pública de muito maior repercussão.
Respondeu a esse desafio
com a criação contínua de quatro (é possível que tenham sido cinco)
ciclos anuais de cantatas entre os anos de 1723 e 1729. Como Wolff
descreve o processo, João Sebastião começava a compor na segunda-feira e
no dia seguinte deveria completar sua tarefa. Na quarta, começava o
trabalho de cópia das partes para a orquestra e o coro, sempre à mão. Os
dias seguintes eram dedicados aos ensaios para que, no domingo, a nova
composição fosse ouvida no intervalo do sermão.
Semana após semana, por vários anos, a
rotina se repetia, sendo humano esperar repetições, fórmulas, atalhos,
etc. Uma breve conferência da lista de composições nesses anos mostrará
como é injusta tal apreciação. Por vezes, um mês apenas de trabalho
concentra obras primas fundamentais, cantatas que, isoladamente, teriam
lugar na posteridade, tendo sido criadas no espaço de poucos dias.
A célebre cantata 147 é apresentada em 2 de
julho de 1723, sendo logo seguida pela BWV 186 (11 de julho) e pela
graciosa cantata 136 (18 de julho de 1723). Outra jóia, a BWV 199, é de 8
de agosto de 1723 e uma semana depois a Igreja de São Tomás ouve a BWV
69. Ainda no âmbito do primeiro ciclo de cantatas, em 28 de novembro de
1723, soa a cantata BWV 61. Menos de um mês depois é executado pela
primeira vez o Magnificat (BWV 243).
O ritmo segue impressionante em 1724. Entre 23 de
janeiro e 9 de abril são ouvidas em rápida sucessão as cantatas 73, 81,
83, 18, 23 e a 31. Obras primas entremeadas por composições também
criativas e interessantes.
O segundo ciclo anual (1724-1725) também apresenta
séries espantosas de criações. Em 1 de abril de 1725, é ouvido o
Oratório da Páscoa (BWV244), no dia seguinte a cantata 6 e uma semana
depois a cantata 42.
|

Thomaskirche,
em Leipzig. ( Panfleto ) |
O terceiro ciclo (1725-1727) traz,
em seguida, as cantatas BWV 164 (26 de agosto de 1725), BWV 79 (31 de
outubro), BWV 110 (Natal de 1725), seguida por BWV 57 e 151 (dias 26 e
27 de dezembro de 1725).
Do quarto ciclo (1728-1729), do qual já restam
menos peças, pode-se destacar, como curiosidade, a passagem entre
janeiro e fevereiro de 1729. Dia 23 de janeiro foi ouvida a cantata 156,
“Estou a um passo da Sepultura”, com sua célebre sinfonia inicial, de
fama secular, e logo a 9 de fevereiro era a vez da BWV 84, “Estou feliz
com o que me cabe”.
E cada ciclo anual de cantatas incluía, além das
peças dedicadas a cada dia consagrado pelo calendário de festas
religiosas, música para o texto da Paixão de Cristo. Assim, enquanto
compunha essas coleções, João Sebastião encontrou tempo ainda para
apresentar em 1724 a primeira versão da Paixão Segundo João (BWV 245),
repetida, com modificações, em 1725. Em 1726, Bach apresentou uma
composição de Friedrich Nicolaus Brauns sobre o texto de Marcos, mas a
Semana Santa de 1727 será comemorada com a Paixão segundo Mateus (BWV
244).
É inútil, no espaço dessa curta biografia,
estender-se sobre a natureza dessas obras, mas elas marcam uma
culminação que só poderia estar perto do fim. Não era possível, nem
fazia sentido prático, continuar nesse ritmo criativo. Com sua
contribuição à música litúrgica em Leipzig definida por tais marcos e
pressionado pelas condições criadas pela administração municipal, João
Sebastião reduz seu esforço criativo. A Paixão segundo São Marcos (BWV
247), composta em 1731, já emprega material retirado de outras cantatas,
inclusive seculares.
Não é exagero afirmar que, após 1730, Bach deixou
de ser um compositor de obras para a Igreja. Não é também exagero
afirmar, contudo, que havia pouco caminho a trilhar dali em diante. A
história da música confirmará essa avaliação.
11. Leipzig: músico teórico e prático
Uma vez completada a tarefa de prover a Igreja de
São Tomás de um estoque extraordinário de música – o corpus de cantatas,
as
Paixões – e sentindo não contar com o apoio do Conselho
Municipal para oferecer música na qualidade desejada, João Sebastião
avança em várias direções da atividade musical. Consolidará uma obra
excepcional em cada uma delas.
Ainda em 1729, por exemplo, assume a direção do
Colégio de Músicos, uma orquestra semi-profissional, composta tanto por
virtuoses, como por alunos de São Tomás ou amadores qualificados. O
Colégio apresentava-se comumente nos jardins Café Zimmerman e, mesmo que
a admissão não fosse paga, os músicos e seu diretor eram, tendo a
responsabilidade de atrair a clientela. A impressão de libretos mostra
que o público podia passar de 200 pessoas. Nada mal para uma cidade de
30 mil habitantes.
Bach esteve envolvido com as atividades do Colégio
de Músicos até pelo menos 1742 e a massa conhecida de seus concertos
para variados instrumentos e muitas cantatas profanas certamente tiveram
como primeiro público os freqüentadores do Café Zimmerman. É o caso dos
concertos para um, dois e três cravos, que demonstraram a capacidade do
instrumento funcionar como solista, e da célebre BWV 212, a Cantata do
Café, a única cantata de Bach executada fora de Leipzig.
Talvez esteja
na produção musical desses doze anos a maior perda relativa de suas
composições. Com base nas escalas de concertos, é possível estimar que
Bach tenha apresentado cerca de 500 horas de música. Desse total, apenas
uma ínfima parte chegou até o presente.
Ao mesmo tempo em que testava suas forças
como músico profissional, com composições leves e voltadas ao gosto
contemporâneo, João Sebastião usava seus talentos para se aproximar da
Corte de Dresden e conquistando a proteção política necessária contra
qualquer ação do Conselho Municipal.
São testemunho dessas atividades as várias
cantatas profanas dedicadas aos aniversários e sagrações dos monarcas da
Saxônia, caso da BWV 213 (“Hércules na Encruzilhada”), da BWV 214
(“Soai tambores, tocai trompetes”) ou a BWV 215 (“Preza tua sorte,
abençoada Saxônia).
Essas comissões podiam ter mesmo como destinatários
funcionários da corte da Saxônia como Carl Heinrich Dieskau, “Mestre dos
Prazeres” do Eleitor e parente de uma célebre amante de Augusto, o
Forte. Para comemorar sua ascensão à nobreza foi composta a BWV 212
(“Temos um novo Senhor”), a Cantata do Camponês.
O sucesso dessas composições é inegável. Em 1729, Bach
recebe o título de mestre de capela da Corte de Saxe-Weissenfels; e em
1736 o prestigioso título de Compositor da Corte de Dresden, na forma de
um diploma assinado pelo Eleitor, Augusto III, e entregue pelo Conde de
Kayserlingk, embaixador da Rússia em Dresden. |

Vitral
de Bach, Thomaskirche |
Em 1747, visita a Corte de Berlin
por convite direto de Frederico II e em 1749, poucos meses antes de sua
morte, está sendo procurado por interessados em comissões, como o Conde
Johann Adam von Questenberg, um rico e nobre austríaco com castelos
espalhados pela Hungria, Boêmia e Áustria.
Obras como o Kyrie da Missa em Si Menor (1733) e a
Oferenda Musical (1747) têm sua origem nesses eventos cortesãos e mesmo
a versão final da Missa, completada em 1749, pode ter sua origem em uma
comissão de círculos católicos de Viena.
Por fim, além da experiência do Colégio de Músicos
e do trabalho como músico de Corte, os anos em Leipzig foram marcados
pela pesquisa estético-pedagógica. Seja em resposta ao ambiente
acadêmico estabelecido pelas relações entre a Escola de São Tomás e a
Universidade de Leipzig ou ao crescente debate estético e filosófico
sobre música nos círculos de especialistas na Alemanha, João Sebastião
inicia em 1731 a publicação dos “Exercícios para o Teclado”, uma série
de composições que organizam e consolidam sua abordagem pessoal da
composição musical.
Nessa série estão as Partitas (BWV 825-830); o
Concerto Italiano e a Abertura Francesa (BWV 971) publicados em 1735; a
Missa para Órgão (BWV 552, 669-689 e 802-805) de 1739 e, por fim, as
Variações Goldberg (BWV 988), publicadas em 1741.
Neste conjunto de obras quase teóricas e profundamente
didáticas podem ser incluídos, naturalmente, o Segundo Volume do Cravo
Bem Temperado e a Arte da Fuga (BWV 1080), publicada postumamente, em
1751.
Tal como no caso das Paixões, não fez sentido
tentar descrever o conteúdo dessas obras no espaço de poucas linhas.
Talvez baste afirmar que elas consolidam quase todas as técnicas de
composição, a música para o teclado, a forma das variações, a elaboração
dos corais e a maestria do contraponto. Obras sem iguais, antes e
depois.
A morte chegou para João Sebastião Bach em 28 de julho de
1750, como conseqüência de infecções causadas por uma cirurgia ocular,
bem sucedida apenas ao amenizar os efeitos de uma catarata.
Ela encontrou um artista que, aos 65 anos de
idade, vivia uma época gloriosa de sua existência: um compositor que
começava a ter reconhecimento dos meios aristocráticos da Alemanha, que
via seus filhos compositores empregados em posições de relevo, que
vencera seus conflitos profissionais e era um participante ativo nos
debates estéticos e musicais de seu tempo e que conseguira casar sua
filha. Muito mais poderia ter feito nessa vida.

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