Nos últimos anos de sua
vida e após sua morte, a reputação de bach declinou:
sua obra era considerada fora de moda se comparada ao novo estilo "Classico" que
surgia. Ele estava a muito tempo esquecido, Entretanto: ele era lembrado
como interprete e professor, e como pai de seus famosos filhos (o mais
notavel C. P. E. Bach). Suas composiçoes mais apreciadas neste
periodo eram suas peças para teclado, neste campo outros compositores
continuaram a conhecer sua maestria.
Mozart, Beethoven e Chopin estiveram
entre os seus mais eminentes admiradores. Em uma visita a Thomasschule
em Leipzig, Mozart ouviu a apresentaçào de um dos motetos
(BWV225) e exclamou, "Agora, aqui existe algo da qual podemos aprender
alguma coisa"; ao se deparar com as partituras dos motetos, "Mozart
sentou-se, pôs as partituras ao seu redor, em ambas as mão,
nos seus joelhos, e nas cadeiras proximas a ele. Esquecendo-se de tudo
a seu redor, ele nao se levantou até que ele tivesse olhado toda
a música de bach".
Beethoven era também um devoto,
aprendendo o cravo bem temperado quando criança e depois chamando
Bach de "Urvater der Harmonie" (O pai verdadeiro da hamonia)
e por sua famosa citação: "Nicht Bach, sondern Meer" "Não
riacho mas oceano, usando o significado literal de seu nome". Chopin
geralmente se trancava antes de seus concertos e tocava as músicas
de Bach
A revivificação da reputação
do compositor entre o grande público
foi incitada em parte pela
biografia escrita em 1802 por Johann Nikolaus Forkel,
que foi lido por
Beethoven entre outro.
Göethe se aproximou relativamente tarde das
obras de Bach, através de uma série de apresentaçoes
de obras para teclado e Coral em Bad Berka no ano de 1814 e 1815; em carta
de 1827 ele compara a experiencia de ouvir a musica de Bach ao
"Diálogo
da Harmonia eterna com nós mesmos". Mas foi Felix Mendelssohn
quem fez mais para reavivar a reputação de Bach com sua apresentação
em 1829 em Berlim da Paixão de São Mateus. Hegel, que assistiu
a apredentação,
mais tarde proclamou Bach como o "Grande
e verdadeiro protestante, robusto e
para assim dizer o genio erudito que
só recentemente nos aprendemos a
apreciar seu enorme valor".
A promoção de Bach por Mendelssohn e o
crescimento de sua
reputação sontinuou nos anos subsequentes.
A Bach Gesellschaft
Sociedade Bach foi fundada em 1850 para promover
suas obras, e mais tarde,
após a segunda metade do século XIX publicar sua obra completa.
Depois disso a reputação de Bach permaneceu
consistentemente alta. Durante o século 20 o processo de reconhecimento
musical assim também como o valor pedagógico de suas obras
continuou, talvez mais notavelmente pela promoção de suas
suites para Cello executadas por Pablo Casals. Outro desenvolvimento tem
sido o crescente aumento de execuçoes informadas historicamente,
que se esforça por apresentar a musica como o compositor queria
que fosse apresentada. Exemplo incluem as gravaçoes feitas em cravos
com afinação barroca ao invés de serem usados os modernos
pianos de cauda, e o uso de pequenos coros ou vozes solistas ao inves das
grandes forças corais que eram muito utilizadas no século
XIX e no inicio do século XX. A contribuição
de Johann Sebastian Bach na Música, ou pegando emprestado um termo
popularizado por seu aluno Lorenz Christoph Mizler, "sua ciencia musical" são
frequentemente comparadas a genialidade de William Shakespeare na literatura
inglesa e Isaac Newton na Física.
BACH, O QUINTO EVANGELISTA - Celso Brant
A
música de Bach não é produto de um homem nem a obra de uma geração,
mas o resultado de longo trabalho em comum. Alguns séculos de polifonia
colocaram em suas mãos uma linguagem, um estilo e uma compreensão do
mundo. Com esses elementos, já trabalhados por grandes e nobres
espíritos, a sua missão ficou facilitada e não lhe foi difícil dar o
melhor de si ao mundo. Fê-lo com a simplicidade e a humildade com que
as árvores oferecem os seus frutos e os pássaros enriquecem a paisagem
do amanhecer com os seus cantos. Teve mestres, é certo; mas entre o que
os professores lhe ensinaram e o que nos ensinou a todos nós, seus
alunos, há uma diferença maior que a existente entre a luz da vela e a
do sol. Bach, como um demiurgo, tirou o seu mundo de si mesmo. O seu
poder de criação era tal, que se diria ter nele se refugiado o “fiat”
divino para poder ampliar as fronteiras do mundo.
Eisenach
foi, bem a propósito, o seu berço natal. Ali, no castelo de Wartburg,
algum tempo antes, Lutero havia se recolhido para traçar os planos da
Reforma. Em tudo ainda sentia a lembrança de Santa Isabel, cuja virtude
era, principalmente, um exemplo de amor à humanidade, pobre, infeliz e
pecadora... O mesmo espírito que presidiu à Reforma foi o que deu vida e
força à sua obra: a paixão pelo Cristianismo na pureza primitiva. Só
quando o espírito de uma época se impregna de tal forma de um ideal que
passa a tirar dele a sua seiva e sua vida, é que se torna possível o
aparecimento de grandes obras de arte. Cria-se, assim, ao lado de uma
linguagem comum, um mundo de anseios a serem expressados, definidos. O
grande destino histórico de Bach foi oferecer-nos uma versão musical do
Cristianismo. Os pintores do Renascimento, os seus escultores e
arquitetos, cuidaram de fixar o espírito cristão em linhas, cores e
volumes. Bach transformou o Cristianismo em som. E essa versão é, sem
dúvida, a mais fiel, a mais pura e a mais profunda. Há, entre a música e
a religião, um parentesco íntimo. Em ambas o que vale é o que não se
vê, o real é o que está acima dos nossos sentidos. O reino da religião
não é o mundo físico: seu domínio começa justamente onde termina nossa
capacidade de ver, de compreender e de sentir. A religião é uma
linguagem além das palavras, uma ponte que nos liga ao mundo que nossos
pés não podem atingir, mas onde a nossa alma se sente como em sua
própria pátria. Música e religião representam um esforço no sentido do
homem libertar-se do frio e imutável silencio que os cerca, de entrar
em entendimento com os fantasmas que o rodeiam.
A
música, como toda linguagem, é uma criação coletiva, uma convenção
geralmente aceita. Onde cada qual inventa sua linguagem, ninguém se
entende. Há sempre uma Torre de Babel no fim de toda cultura: o povo que
deixa de ter uma linguagem o comum, deixa de ter, também, um mesmo
destino. O Cristianismo foi a grande paixão do tempo de Bach. Ele é
protestante no exato sentido de Lutero: o seu desejo era o retorno a
verdadeira doutrina de Cristo, isenta das adaptações e das
interpretações dos padres. A sua música fixa e exalta de tal forma esse
sentimento que dá a impressão de uma longa prece, que sobe aos Céus e
vai até os pés de Deus. A linguagem de Bach alcançou uma significação
universal porque é a expressão do anseio e da esperança do imutável
coração humano. Não apenas as suas energias, mas todas as forças
espirituais do seu tempo se reuniram em torno da criação do seu estilo –
esse majestoso e imponente barroco, tão propício à fixação das altas e
luminosas visões do espírito. Foi nesse estilo, no estilo de suas
cantatas, que o Aleijadinho plasmou, nas nossas igrejas, a mensagem
mais alta da sua sensibilidade, inspirada no mesmo espírito cristão,
feito de compreensão e bondade. O barroco não é uma linguagem para as
idéias comuns, para a descolorida existência de cada dia. Não é um
estilo para a construção de choupanas, mas de palácios e catedrais.
A
sua base é a valorização do espírito, do conteúdo. A idéia deve ser
tão densa, tão violentamente presente, que força a matéria e a subjuga.
As estátuas barrocas são ta grávidas de espírito que chega a curvar-se
ao seu peso. Os padres de Congonhas do Campo que se queixam de que os
fiéis não podiam rezar diante dos Profetas do Aleijadinho, pois o seu
altar ameaçador lhes conturbava a alma, nela derramando a semente do
temor. E os afrescos de Miguel Ângelo na Capela Sixtina tiravam àquele
recanto, segundo alguns padres, acolhedor, pois perturbava mesmo os
espíritos mais bem formados. Também as cantatas de Bach nos arrastam
para um mundo de estranhas, majestosas e fantásticas visões. Bach levou
o estilo barroco às ultimas conseqüências. A sua polifonia é tão
intrincada, a floresta de sua música é tão densa, que os próprios
contemporâneos não chegaram a perceber sua selvagem beleza. Ele é tão
claro e ardente quanto o sol, que ninguém consegue fixar a olho
descoberto. Foi necessário que a névoa do tempo se interpusesse entre
ele e nós para podemos contemplar o seu fulgurante esplendor. Como o de
Miguel Ângelo, o barroco de Bach é a vida em plenitude, a vida na sua
impetuosidade de anseios, de beleza, de miséria e de infinita beleza.
Não é uma arte para receio, mas para o trabalho, o duro do trabalho do
espírito, uma convocação de todas as forças interiores. Bach sentiu a
música como religião, como larga porta aberta para o infinito, através
da qual é dada ao homem, para consolar-se de sua miséria e das suas
fraquezas, comunicar-se com as forças superiores, o mundo dos seus
anseios, a pátria das suas íntimas esperanças.
A
música nada afirma e nada nega. Como a terra ela é fria, mas constitui
a fonte de toda a vida. A Natureza, que a inventou, criou-a à
semelhança das flores e das altas nuvens que passeiam pelo céu, por
sobre os altos cumes. Na sua mudez ela fala mais do que as palavras,
diz melhor do que a lágrima e o sorriso. É ouvindo uma cantata de Bach
que somos tocados pela compreensão de nossa presença no mundo e do
sentido do nosso destino. Fomos feitos, como os pássaros, para alegrar a
perene festa da vida e, como as flores, para enfeitar os berços e os
túmulos. A nossa missão é cantar, como os regatos, a doce melodia
interior e refletir, o mistério lado de nossa alma, a longínqua e
solitária luz das estrelas. A música de Bach é uma versão
universalizada do Cristianismo: um cristianismo para todos os homens,
mesmo os que não crêem. O seu mais alto desejo foi chegar a Deus. E
conseguiu esse intento libertando-se de toda contingência humana. No
fim seremos o que fomos no primeiro dia. Esquecido das palavras e
desprezando o ensinamento dos mestres, Bach buscou traduzir em música o
sentimento do mundo. E o fez com tanta força e sinceridade, que é,
ainda hoje, através dessa sua milagrosa escada que podemos chegar ao
Céu e falar com Deus.
Nada
nos dá uma idéia mais verdadeira do destino humano que a música. O seu
denso mistério também é o nosso; o seu mundo de sugestões é o mesmo
que existe em nossa alma; a sua espantosa beleza é a que se abre aos
nossos olhos como uma visão; o seu encantamento é a mesma sedução que
nos prende, como folhas batidas pela fúria da tempestade à frágil haste
da vida.
Não
se pode dizer que Bach foi o maior dos músicos, porque não há fita
métrica para medir o gênio. E como as árvores, os homens devem ser
avaliados, não pela sua aparência, mas pelas raízes que tem sobre a
terra. Essas raízes são o sustentáculo contra o vendaval do tempo, que
tudo leva de roldão. Nesse sentido Bach dispõe de uma situação
privilegiada. A sua fortaleza é uma glória inexpugnável. Não é que não
tenha defeitos. Como todo artista barroco, Bach é, muitas vezes,
difícil, intrincado e obscuro. A críticas que, nesse sentido, lhe fez
Scheibe, seu contemporâneo, são precedentes, apesar de exageradas. Já
no fim da vida Bach assistiu a vitória do estilo que desbancara o seu, e
de que havia sido a mais alta e nobre expressão, baseado nos recursos
do contraponto e da fuga, e a cujos cultores se referia ironicamente
Telemann, vendo neles “velhos que contraponteiam indefinidamente, mas
que são desprovidos de capacidade de invenção e escrevem a quinze ou
vinte vozes obrigadas, e em que o próprio Diógenes, com sua lanterna,
não encontraria uma gota de melodia.”
Bach
é denso e impenetrável como uma floresta tropical. Os que, no entanto
se aventuram a enfrentar os perigos dessa selva, descobrem nos eu
interior maravilhosas estradas, calçadas de pedrarias raras e atapetadas
de flores, que nos induzem a distantes e misteriosos países.
Os
evangelistas procuraram, através de palavras, trazer até nos a lição
de Cristo. Bach compreendeu o quão imperfeitamente foi cumprida essa
missão. O espírito do Filho do Homem foi tão torcido, tão desvirtuado,
traduzido de forma tão incompleta que, ao invés de semear a paz, a eles
trouxe mais discórdias, mais desavenças e ódios maiores. Dispo-se,
então, o compositor, a nos dar uma outra versão do ensinamento de
Cristo. Na sua obra Jesus surge na sublime apoteose da pureza, como um
igual dos homens, capaz de sentir as dores e alegrias, e, sobretudo, de
a todos perdoar os pecados e as fraquezas, que são contingências de
nossa natureza e símbolos do nosso nada. Desde o “Oratório de Natal”
até as “Paixões”, Bach acompanha toda vida de Jesus. Nunca o espírito
de Cristo foi tão bem fixado quanto na música. Esta se apresenta tão
rica de conteúdo humano, de bondade e de perdão que dá a impressão de
uma longa, iluminada e infinita benção que cai sobre todos os homens,
indiferentes às suas crenças e aos seus preconceitos. A música é a
linguagem absoluta. Ouvindo as “Paixões” de Bach, percebemos que o
sacrifício de Jesus não é senão o símbolo da grande tragédia, de que
somos todos mártires obscuros e inconscientes. A vida humana só tem
sentido quando é a concretização de uma idéia. Só há verdadeira
grandeza no destino que se realiza. A lição essencial de Cristo
consiste na valorização do espírito, sem cuja presença nada tem
sentido. Bach leva essas premissas às últimas conseqüências. A sua
música é o Espírito Santo que desceu à terra e passou a habitar entre
nós.
E
através de Bach que entendemos o verdadeiro segredo da música. O homem
é, no fundo, um animal irracional. A razão é, em nós, apenas a
superfície. No nosso íntimo, conservamo-nos tão selvagens quanto os
animais bravios, rudes como as cachoeiras que se lançam furiosa contra
as abruptas pedras, e laboriosos como as sementes que se transformam em
folhas, flores e frutos. Guardamos, no nosso mundo interior,
ressonâncias vagas de quando morávamos no fundo do mar; do tempo em que
perscrutávamos a selva e conhecíamos o seus avisos; das lutas pelo
domínio da terra e de suas misteriosas forças. A música é uma evocação
desses tempos em que não existiam nem palavras, nem razão. Uma
linguagem tão nossa, tão familiar e acolhedora como um abraço de mãe.
Sendo um produto do inconsciente, a ele se dirigindo, a música é
intuitiva, independendo de aprendizado. E aquele que não tiver, no
labirinto de sua alma, a fonte criadora. Inútil buscará o sucedâneo. A
capacidade criadora nada tem a ver com a inteligência. Ela é uma
ruminação interior, em cuja elaboração a nossa participação consciente é
nula. A mais alta inteligência é capaz de produzir a menor obra de
arte. Mas ao artista não compete apenas criar, mas fixar a criação.
Bach
compreendeu, como nenhum outro músico, a importância da técnica, que
coloca o artista em situação de aproveitar, em plenitude, suas
inspirações. Para ele, todo artista deve ser, um artesão, um profundo
conhecedor do seu “métier”, cuja técnica precisa dominar completamente.
Essa técnica deve ser adotada ao que tem de fixar. Nesse sentido,
deu-nos impressionante lição de coragem ao desprezar as regras
tradicionais que lhe impediram a livre expressões das idéias. A sua
harmonia tem mais flexibilidade que a do seus contemporâneos
adotando-se melhor ao seus fins. “Aparentemente” – nota Forkel o
primeiro do seus biógrafos – “infringia com isso todas as regras
tradicionais e tidas por sagradas em seu tempo, mas não as infringia de
fato, pois realizava perfeitamente a finalidade dessas regras, que só
podem ter por objeto a pureza da harmonia e da melodia, ou seja, das
sucessivas e coexistente eufonias, embora o fizesse por caminhos
insólitos”. As liberdades técnicas não eram ,aliás, raras na família
Bach. Muito antes de Johann Sebastian, Johann Cristoph, organista da
corte do município de Eisenach, escandalizou seus contemporâneos ao
fazer uso, num motete de sua autoria, da sexta aumentada. As liberdades
técnicas de Bach lhe trouxeram muitos dissabores. A 21 de fevereiro de
1706, por exemplo, quando era organista da Neue-Kirche, em Arnstadt,
recebeu do Consistório séria advertência porque, até então, “havia
feito, nos corais, muitas variações estranhas, misturando muitos tons
alheios, tanto que a comunidade ficou confundida”. “Para o futuro –
ordenava o consistório – deve se quiser introduzir um tonum peregrinum –
permanecer no mesmo e não cair imediatamente em outra coisa, nem, como
até agora tem feito, tocar um tonum contrarium”. O tonum peregrinum é,
como se advinha, a modulação, e o tonum contrarium, a trova brusca de
tonalidade. Também em Mülhlausen, Bach encontrou tal resistência à sua
música que teve de deixar o posto de organista, que ocupou durante
algum tempo. Justificando a deliberação de abandonar o cargo, confessou
humildemente: “Tive sempre o pensamento de fazer progredir a música
religiosa, para maior glória de Deus, mas não o tenho podido conseguir
até o presente sem oposição”. Durante
toda a vida, Bach lutou contra essa incompreensão. Que acabou por
amargar os seus dias, mas jamais lhe roubou a confiança em si mesmo.
O
Barroco não se presta às confissões íntimas. O seu ambiente não é o
das confissões, mas o dos feitos grandiosos e sublimes. Bach é um
artista impessoal. Pouco ficamos sabendo dele através de sua obra. Ao
contrário do românticos, que sempre falaram na primeira pessoa, usa,
quando muito, a primeira do plural. Era a alma do seu tempo e do seu
povo que se expressava na sua voz. Nunca ambicionou honrarias e
glórias.
Foi
simples como todo aquele que tem real consciência da sua grandeza.
Miguel Ângelo apenas assinou um dos seus trabalhos: a Pietà. Sentia que
toda obra de arte é um produto da coletividade, do grupo humano, como a
linguagem e os caminhos. Como o seu povo, Bach ambicionou servir a
Deus. E foi esse o desejo que conduziu a sua música, por estradas
iluminadas à mais sublime pureza. No “Orgelbüchlein”, em que reúne uma
série de trabalhos compostos em Weimar, escreveu essa epígrafe: “Para
maior glória do Altíssimo e melhor instrução do próximo”
E
aos seus alunos da Escola de São Tomás ditou essa explicação do baixo
cifrado: “O baixo cifrado é o mais perfeito fundamento da música, que a
esquerda toca as notas indicadas, tomando a direita as consonâncias e
dissonâncias, a fim de que surja uma agradável harmonia para a glória do
Senhor e o prazer permitido à alma. Como a de toda música,a finalidade
do baixo cifrado não deve ser outra senão a glória de Deus e a
recreação da alma.
A
música de Bach valorizava e purificava todos os temas. Em suas mãos os
motivos mais comuns adquiriam brilho e o esplendor. Transformou,
seguindo o exemplo de Lutero, canções licenciosas e picantes em corais
piedosos, como veremos páginas adiante. Porém, mais extraordinário ainda
é o fato de ter utilizado o tema da figura simbólica da sensualidade
de “Hércules na Encruzilhada” na “Canção de Ninar”, com a qual a Virgem
Maria, no “Oratório de Natal”, adormece o Menino Jesus. Ouvindo o
“Oratório de Natal”, longe estamos de imaginar que se trata de simples
colcha de retalhos: suas árias e coros, com apenas oito exceções, foram
tirada das cantatas profanas “Lasst und sorgen”, “Tönet, ihr Pauken” e
“Preise dein Glücke”, as quais, por sua vez, provavelmente, não foram
escritas para libretos seculares. De tal maneira a música de Bach fixa a
alegria da terra – dos homens simples e das almas puras, pela vinda do
Salvador, que esse oratório continua ser o mais alto monumento musical
sobre a Natividade. A música atinge, nele, a plenitude de humanidade e
pureza.
A
arte tem, sobre as demais atividades humanas, a vantagem de estar
liberta das contingências do tempo. Um estudante de astronomia pode hoje
refutar Aristóteles; muito da ciência de Platão faz rir, agora, ao
aluno mais medíocre; um neófito de medicina muito teria a ensinar a
Hipócrates. No terreno da Música, tudo se passa diferentemente. Há,
sim, um torvelinho de escolas e estilos, de linguagens e expressões.
Mas uma obra, como a de Bach, que expressa uma concepção de mundo e
simboliza o sentido de uma época, jamais será superada. As gerações hão
de reverenciá-las pelos séculos afora, como uma das mais altas
expressões do espírito humano, que nela se fez música para viver além
do tempo e levar a Deus a gratidão da humanidade, infinitamente valiosa,
da vida.
Bach - Ontem e hoje.
O poder e a força de Bach são
tão grandes ainda hoje, decorridos 250 anos de sua morte, que essa
data está sendo lembrada praticamente em todo o mundo de modo reverente
e agradecido por quantos o veneram. Em 1998, quando estivemos pela última
vez em Leipzig, a igreja de São Thomas, onde descansa o gênio,
já estava quase totalmente interditada para concertos, cultos, visitas,
etc. Os dois grandes órgãos por certo tempo calariam para
que a igreja pudesse ser preparada para grande data e somente o altar,
onde está sua lápide, permaneceu aberta ao público
e para cultos, acrescido de um pequeno órgão (que lá não
poderia faltar).Seus admiradores são
de todas as raças, credos e cores, confirmando a frase de um deles,
o nosso Villa-Lobos: "a música de Bach é um fundo folclórico
de todas as nações". Quanto material já foi escrito
com base nas letras B-A-C-H !
Mas, quem era Bach? Nascido a 21/março/1685
em uma família de organistas, regentes, enfim, alemães operários
da música, os quais ocuparam por 6 gerações postos
musicais. Ele faleceu a 28/ julho/ 1750. Órfão desde os 10
anos, foi criado por seu irmão mais velho. Trabalhou em vários
lugares, sempre na Alemanha, e casou duas vezes (viúvo de Bárbara,
desposou Ana Madalena), tendo ao todo 20 filhos, um pormenor bastante romântico
em seu perfil. Gozou de boa saúde e só sua miopia, agravada
por escrever à luz de velas, lhe debilitou mais sua visão.
Mas viveu feliz, com modéstia e simplicidade, percorrendo seu caminho
entre o ideal e o trabalho diário. Queria embelezar o culto protestante.
Todas as descrições que temos o indicam
como homem reto, de bom caráter e justo.
Nas
perícias e concursos
de órgão era severo e minucioso, chegando a
fazer inimigos
com isso. Não falava mal de composições ou perfomance
de
colegas, mas admirava quem era grande.
Muitas vezes se envolveu em discussões
com chefes civis ou eclesiásticos,
mas quem não o faz? Foi
dedicado à família e ao trabalho, e afável com
os alunos.
Sua biblioteca continha a Bíblia, livros de
canto, 50 volumes de Teologia
e obras de Lutero. Em todo o perfil de Bach
desponta o traço
da sua grande religiosidade. Era algo espontâneo.
O assunto lhe interessava. O SDG (Soli Deo Gloria) está em muitas
de suas obras, e uma dedicatória honrando a
Deus na capa da obra
mais importante para o ensino de órgão - o Orgelbüchlein
- que
ele modestamente intitula "Pequeno livro do Órgão".
Tinha uma cultura teológica consistente e formulou teologia em tons,
sobretudo nos corais do livro mencionado e cantatas.
Ele usou toda a sua
alma de pensador místico com simbologia e
numerologia numa inusitada
linguagem, e fez os alunos se depararem,
já de início, com
todo o tipo de dificuldade no instrumento,
pois pensava que assim era o
melhor .
E o Bach executante? Todos gostariam de conhecer sua
técnica de intérprete.
Os órgãos que ele tocou
desapareceram, como muitos de seus manuscritos.
São raras suas próprias
indicações, mas certo é que sua virtuosidade teve
admiração
da Alemanha inteira, onde, após o episódio
com o francês Marchand, tomou rumos
de herói nacional, o que
dividiu com Lutero e mais tarde com um terceiro vulto que foi Kant.
De
sua terra ele nem precisou sair e nem cursar universidade para chegar
ao
reconhecimento geral. Sabemos que a velocidade de seus pés era tamanha
que pareciam ter asas quando voavam na pedaleira, conservando contudo
bastante
imobilidade do corpo, mesmo quando realizando cruzamentos,
saltos de mãos
e pés, enfim, sem grandes movimentos vivos corporais.
Mas ele não
era só técnica, tanto que recomendava aos alunos que tocassem
com expressividade os corais e soubessem o conteúdo das palavras
do canto
para poderem melhor se exprimir.
Quanto à registração,
deu poucas indicações. Aqui e ali o nome de um registro,
sinais de f, p, organo pleno, usando sempre sua grande experiência
e bom gosto.
O gênio ficou esquecido por quase 60 anos. Mais
contemporaneamente, Albert Schweitzer, organista, filósofo, médico
e teólogo, detentor de Prêmio Nobel, foi seu grande estudioso
e o chamou de músico poeta. Realmente ele foi tudo isso, podendo-se
ainda citar a frase de Gevaert: "A música de Bach é como
o Evangelho; o público pode conhecê-lo por Mateus, por Marcos,
Lucas ou segundo João, todos diferentes mas sempre Evangelho".
Bach foi o 5o. Evangelista. Obrigada por teres
vivido. Nós ainda estamos te sentindo aqui (e que responsabilidade
para nós, luteranos...)
Texto: Anne Schneider - Organista
Titular - Igreja Martin Luther Porto Alegre, RS
Fotografia: Anne Schneider junto ao mestre. J.S.Bach Denkmal - ThomasKirche, Leipzig.