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                       J.S.Bach - Biografia

        1. Um órfão em Eisenach

  Os primeiros anos da vida de João Sebastião Bach não revelam nada de extraordinário. O filho de João Ambrósio Bach e Maria Elisabete Bach nasceu em um sábado, dia 21 de março de 1685, em uma família de oito irmãos, quatro vivos até a idade adulta. Seu nome também nada tinha de especial: foi uma homenagem a Sebastião Nagel, amigo de seu pai, músico, em visita a Eisenach naqueles dias. Eisenach, por sinal, era então uma cidade pequena (seis mil habitantes apenas), sendo famosa apenas por sua conexão com a vida de Lutero.

  João Sebastião estava destinado a ser mais um Bach, uma extensa e ramificada família da Turíngia, ocupando todo tipo de posição musical na região e fora dela. Seria um músico municipal, como seu pai, um organista de igreja ou um músico de corte, como outros de seus parentes. Freqüentou a escola alemã, de vizinhança, e depois a escola latina, dos cinco aos sete anos, com excelente desempenho. O comparecimento à escola, por sinal, era obrigatório na Turíngia. O currículo, inspirado por Comênio, era composto de religião, gramática, aritmética e línguas.
Esse era o mundo provincial e ordenado do menino João Sebastião, em uma região da Alemanha que começava a exibir sinais de prosperidade econômica, algumas décadas depois do fim da Guerra dos Trinta Anos.

  Em 1694, contudo, no espaço de alguns meses, João Sebastião perdeu sua mãe e seu pai, que foi também seu primeiro professor. A família foi praticamente desfeita e o registro escolar do menino João Sebastião revela dezenas de faltas. Em um mundo sem previdência social, o único amparo dos desvalidos residia na caridade pública e no círculo familiar.

  O menino de nove anos não teria a proteção de seu pai nem de sua mãe nos anos mais importantes de sua formação, precisando contar com a generosidade de parentes. Não poderia sonhar com uma educação mais prolongada, precisando ganhar seu sustento desde cedo. Teve de viver em lares alheios e foi acolhido por seu irmão mais velho, João Cristóvão, organista em Ohrdruf.

  A literatura do século XIX nos acostumou com histórias de órfãos, vindos de famílias destruídas pela revolução industrial. Não há, contudo, registros posteriores da impressão causada pela orfandade em João Sebastião. Ele nada falou sobre o assunto. Estudos modernos mostram o custo psicológico e humano dessa condição, mas podemos apenas fazer suposições sobre sua superação.
       
       Bach em sua juventude. Desenho de Mary Greenwalt

  É razoável supor, por exemplo, que a perda dos pais e da proteção familiar foi um elemento decisivo para definir a importância que Bach sempre deu à tradição profissional-familiar. Foi nesse ambiente, afinal, que encontrou forças espirituais e intelectuais para superar a insegurança e a falta de referências emocionais. Esses elementos estão sempre presentes, em diferentes formas e intensidades, em sua carreira musical. 

  É plausível também conjecturar que a busca da perfeição harmônica como espelho de um universo mais amplo esteja conectada à tentativa de superar as imperfeições e os sofrimentos que caracterizam a vida humana. Um esforço bem típico de recomposição da ordem e do equilíbrio por parte um menino órfão.

  Seja como for, não há registros, positivos ou negativos, sobre a estada no lar de seu irmão. O episódio da cópia dos manuscritos musicais é falsamente óbvio. Não sabemos por que estavam proibidos, não sabemos por quanto tempo aconteceu, não sabemos se João Cristóvão era rígido e se reagiu com severidade ao fato. Sabemos apenas que João Sebastião tinha sede de conhecimento, mas isso também admite uma leitura trivial. Ele tinha consciência de que precisava ganhar seu sustento sozinho, estando na vida por sua única conta.

  Apenas um fato é digno de nota na relação com seu irmão, que também morreu cedo, em 1721, aos 49 anos de idade. Cristóvão, em 1713, deu o nome de João Sebastião, que então já era o famoso organista em Weimar, a um de seus filhos. Sem dúvida alguma, um testemunho respeitoso do irmão mais velho ao caçula.
Essa combinação da necessidade de afirmação profissional com a busca de equilíbrio emocional em sua tradição familiar explica facilmente sua sede de conhecimento e o envolvimento com o mais complexo dos instrumentos musicais, o órgão de tubos – ao mesmo tempo ganha-pão e instrumento de afirmação artística.

  Esse foi o início do caminho que o levou à posição, ao mesmo tempo, de consultor na construção e reforma de órgãos, de instrumentista sem par e criador sem igual. A música, a partir do órgão, representava para ele um universo único, não havendo marcos limítrofes entre o compositor, o intérprete e seus instrumentos. O primeiro sinal da “ambição cósmica” de Bach, apontada por Edward Said.


       2. Excelência escolar

  A melhor prova de que a orfandade foi ao menos compensada pelo apoio familiar e pela casa de seu irmão é o desempenho escolar nos anos em Ohrdruf. Os dois irmãos, Jacob e João Sebastião, foram matriculados do Liceu Gleichense, escola fundada em 1560 por Jorge II, conde de Gleichen. João Sebastião terminou a tertia em 1697, em primeiro lugar na turma, mesmo sendo o mais jovem, com 12 anos de idade. Na classe seguinte, a secunda, foi o segundo colocado e chegou à prima com apenas 14 anos, quatro anos abaixo da média normal ao tempo.

  Ele completou sua educação fundamental em oito anos, uma realização desconhecida em sua família – todos os seus irmãos deixaram a escola na tertia, aos 14 anos. Ao mesmo tempo, também ganhava dinheiro como membro do coro escolar, que recebia estipêndios para cantar pelas ruas da cidade três vezes por ano. Data dessa época também seu contato cotidiano com o patrimônio de melodias e poemas dos hinos luteranos.

  No Liceu, estudava-se latim e grego, teologia baseada na obra de Leonard Hutter e história romana, lida em Cornélio Nepos, Cícero e Curtius Rufus. Comédias de Terêncio e as obras históricas de Johannes Buno faziam parte do currículo e, ao longo de todos os anos, matemática.

                    
         Bach e seu colega Jorge Erdmann no caminho de                  Luneburg. Desenho de Mary Greenwalt
  João Sebastião não completa a prima em Ohrdruf. Junto com seu colega Jorge Erdmann seguem para a Escola de São Miguel em Luneburg, no ano de 1700, certamente frustrado pelo fim do pagamento aos coristas do Liceu. Uma série de conexões entre a família Bach e os responsáveis pelo Liceu permitirá o acesso à escola de Luneburg.

  Foi uma decisão pessoal, portanto, que levou o primeiro membro da família Bach a sair da Turíngia e a ser um dos primeiros a completar a escolaridade necessária para o acesso ao ensino superior.

  Trata-se de um sinal de que João Sebastião começava a buscar exemplos fora de seu círculo familiar, onde prevaleciam músicos municipais, cuja formação profissional seguia o modelo medieval do aprendizado junto a um mestre de prestígio.
Não há dúvida – e as biografias escritas sob a orientação de seus filhos afirmam isso – de que João Sebastião teve como primeiro professor formal o irmão João Cristóvão, de acordo com as técnicas do tempo – o ensino pelo exemplo e pela cópia de composições dos grandes mestres. A experiência na escola de São Miguel em Luneburg, contudo, abriria outros horizontes para o rapaz de 15 anos.

  A imersão musical provida por seu meio social e familiar foi complementada por uma formação acadêmica complexa, fruto das reformas educacionais promovidas pelo protestantismo. Começou em Luneburg a biografia do músico excepcional que também conhece línguas, história sacra e profana, matemática, lógica, etc. Um homem que toca todos os instrumentos e também conhece sua mecânica.
Por fim, ele certamente começou a compor sob João Cristóvão, mas há pouquíssimos registros de suas primeiras composições. 

  Primeiro, porque compositores razoáveis se livravam desse material incipiente na idade madura. C.P.E Bach registra um desses episódios em que descarta suas obras primeiras por meio da crítica das chamas. Segundo, vazados na tablatura alemã, não foram preservados em sua maioria.

  Ainda assim, Wolff entende que pelo menos três exemplos podem ser destacados: os exemplares dos chamados Corais Neumeister em que uma composição de Pachelbel é “terminada” por outro compositor, ou seja, J.S.Bach.
                        
                  Bach Jovem - por J. E. Rentsch, the Elder

  Seriam os primeiros registros da atividade do artista: uma espécie comentário a Pachelbel. As chamadas Fughettas podem ser até anteriores, mas não trazem a marca da originalidade composicional. Em Jesus minha Alegria (BWV 1105) Como Jesus Cristo na Noite (BWV 1108) e Jesus amado do coração (BWV 1093) Bach começa a “ir além de seu escopo” justamente no território – o coral protestante – em que permanecerá até o fim.

 

      3. Desafiando os mestres

  A última fase da escolaridade formal de João Sebastião, no sentido moderno do termo, começa em março de 1700 com sua passagem pela Escola de São Miguel, em Luneburg. Fundada no século XIV como apêndice de um mosteiro, a escola seria ampliada e ocuparia suas dependências após a Reforma. Mais tarde ganharia um anexo especial no século XVI: uma academia de nobres (Ritter Academie). João Sebastião estudava de graça na escola, com uma espécie de bolsa para musicistas. No seu caso, membro do coro de maior qualidade da Escola.

  O currículo ampliava o conteúdo das tradicionais escolas latinas, compreendendo religião, lógica, retórica, latim, grego e aritmética. Além disso, a Ritter Academie, mesmo tendo corpo de alunos separado, podia aceitar membros da escola de São Miguel como pajens e ajudantes dos estudantes nobres. Com isso, também estes tinham acesso às aulas de equitação, esgrima e línguas modernas como francês e italiano.

  Esse contato com a Ritter Academie, por sinal, é a única explicação para o aprendizado precoce de francês e italiano de João Sebastião. É bem provável também que tenha sido em Luneburg que ele estabeleceu as primeiras conexões com membros da aristocracia alemã, uma influência quase invisível, mas sempre presente em momentos importantes de sua carreira musical. Mesmo um órfão pobre como ele, estudando graças à caridade, teve contato desde jovem com o universo social dos que estavam vários degraus acima na escala social.

      

               
   Placa na igreja de São Miguel em Lüneburg com    informações da presença de Bach no coro por dois     anos quando era menino.

  Em Luneburg, contudo, irá emergir não o acadêmico, mas o organista de rápida carreira e afirmação musical. As biografias do início do século XVIII talvez não dispusessem ainda do tropos do ‘jovem prodígio’, mas é difícil classificar de outra forma os fatos transcorridos entre sua entrada na escola, em 1700, aos 15 anos de idade e sua formatura em 1702, sendo logo escolhido como organista da cidade de Sangerhausen e músico de corte em Weimar em 1703.

  É nesse curto período de tempo que completa várias viagens a Hamburgo para ouvir Jan Adam Reinken. É também rapidamente integrado ao círculo de organistas de Lüneburg, onde se destacava George Böhm e participa das atividades musicais do castelo de Lüneburg, residência do Duque de Celle, patrocinador da cultura, da música e da dança francesa na Alemanha.

  Coletâneas de obras organizadas nesse tempo por membros da família Bach mostram por fim como era vasto o patrimônio artístico acumulado e, mais importante, em circulação nos meios freqüentados por João Sebastião.

  Todos esses fatos revelam o rápido amadurecimento artístico e humano do órfão que saiu de Ohrdruf. Formado em 1702, presta audição em Sangerhausen, sendo aprovado por unanimidade, perdendo o posto apenas por influência do soberano feudal da cidade.

  Passa um tempo como músico de corte em Weimar, desde o início do ano de 1703 e logo em junho, ainda aos 18 anos de idade, é chamado, na qualidade de consultor, para testar o novo órgão de Arnstadt. Como lembra Wolff, a família Bach dispunha de vários nomes mais velhos e mais experientes para essa comissão prestigiosa de uma cidade que ficava em seu território tradicional. Ninguém questionou os méritos do jovem João Sebastião.

  O recital-teste em Arnstadt tem lugar na festa de São João, dia 24 de junho de 1703 e João Sebastião merece um comentário favorável do consistório e recebe não apenas pela consultoria técnica, mas também um pagamento pela exibição musical.
Não custa reforçar. Aos 18 anos, mal tendo completado seus cursos preparatórios para a Universidade, João Sebastião é convocado a dar pareceres técnicos sobre órgãos e estabelece ligações que se revelarão estáveis com mestres da estatura de Reinken e Böhm. Algo havia ali, sem dúvida.

  Wolff não se estende muito sobre as obras que podem ser atribuídas a esse período, como os dois caprichos para teclado (BWV 992 e 993) e os prelúdios em dó maior (BWV 531), sol maior (BWV 535) e ré maior (BWV 549A). Registra, contudo, a perfeita adequação da Tocata de Fuga em ré menor (BWV 565) ao órgão de Arnstadt. Essa peça representaria, em vários sentidos, a emergência do jovem e brilhante organista, testando ainda seus poderes na polifonia, mas já capaz de produzir uma obra cuja fama se estenderá por séculos.

  A Tocata e Fuga em ré menor, portanto, não é a trilha sonora de algum homem maduro amargurado com a vida ou de um cérebro turvado por visões fantásticas, mas de um rapaz de 18 anos, confiante, enviando sua mensagem aos Mestres que o cercavam: aqui estou eu!


‎     4. Jovem em Arnstadt

  O primeiro emprego formal de João Sebastião é como organista da cidade de Arnstadt. Era a cidade mais antiga da Turíngia e sua carta de direitos e franquias datava de 1266. No século XVIII, era a capital de um Principado, governado pelos condes de Schwarzburg, e possuía pouco menos de 4 mil habitantes. Bach aceitou formalmente o posto em 9 de agosto de 1703, com responsabilidade pelo órgão da “Igreja Nova”.

  Para um músico de apenas 18 anos, o posto era excepcional. Seu salário de 50 florins, somados a outros benefícios, era três vezes maior que o valor recebido como funcionário eventual da corte de Weimar. Ele tinha livre acesso ao instrumento e uma escala de trabalho pouco pesada, quando comparada à dos demais organistas da cidade. Além disso, o superintendente das igrejas, Johann Gottfried Olearius, era um eminente pastor e teólogo, conhecido da família Bach e certamente uma fonte de instrução literária e religiosa para João Sebastião.

  As funções contratuais de João Sebastião incluíam o acompanhamento dos corais cantados pela congregação, a execução de prelúdios corais, prelúdios e poslúdios e peças livres nas Vésperas. Em pouco tempo, contudo, ficaria claro que o Consistório exigia muito do organista e que o organista era um indivíduo independente demais. Tome-se o célebre evento do fagotista Geyersbach. João Sebastião não se entendia com os coristas e instrumentistas, quase todos mais velhos do que ele. Foi fácil passar das críticas à briga de rua. Ao longo da polêmica, foram ouvidas as críticas ao organista que fazia “variações imprevistas” e não oferecia “música de concerto”. João Sebastião respondeu que o faria se a cidade contratasse um diretor musical que impusesse disciplina ao coro e aos músicos.

  Wolff, na verdade, suspeita que João Sebastião já fazia seu jogo duplo, trabalhando como músico no castelo dos condes e negligenciando suas funções como organista da cidade por falta das condições que ele julgava necessárias. É a esse ponto da biografia que pertencem os episódios da “moça estranha no coro” e da espada. Wolff, sempre inteligente, lembra que as mulheres não eram tão proibidas assim de participar de atividades musicais nas igrejas. A figura das adjudanten oferecia essas oportunidades. 

  No somatório desses atritos, João Sebastião decide novamente sair da Turíngia para empregar-se na cidade imperial de Mülhausen e também a casar-se, com a prima Maria Barbara, em 17 de outubro de 1707, aos 22 anos.

  A liberdade artística, a proximidade da corte dos Condes de Schwarzburg e o amplo público - que podia chegar a mil e quinhentas pessoas na Igreja Nova, abriram um novo período criativo para João Sebastião.
                           
                                                    Família Bach

  Data desses anos obras autônomas como os prelúdios BWV 566, BWV 535 e BWV 921, obras relacionadas a temas de Reinken, como a BWV 965 (cuja fuga é excepcional), alguns primeiros prelúdios do Orgelbuchlei, como “Ich ruf zu dir” e certamente a Passacaglia e Fuga, BWV 582.

   O grande evento artístico-biográfico do período em Arnstadt foi, contudo, a viagem a Lubeck, para ouvir Buxtehude. Pelo fato em si – dez dias de caminhada, cobrindo 250 milhas - ela traz a marca da juventude aventureira de João Sebastião; pelo testemunho de admiração, outro traço notável de sua vida: o interesse pela obra alheia e a rápida absorção de modelos e idéias. A experiência em Lubeck, que se estendeu por quatro meses, em vez das quatro semanas prometidas ao Consistório de Arnstadt mostrou-se fundamental não apenas para a obra organística, onde o impacto é evidente, mas também para a obra vocal, com que certamente teve contato em seus meses em Lubeck.

  Trata-se de mera especulação se João Sebastião compôs cantatas ainda em Arnstadt. É certo, porém, que ao chegar a Mülhausen, depois da experiência em Lubeck, ele criaria evidentes obras primas: a BWV 4, “Cristo jaz nos braços da morte” e a BWV 106, “O tempo de Deus é o melhor dos tempos”.


        ‎5. Carreira meteórica ou busca do pão?

  Os primeiros anos da carreira profissional de João Sebastião revelam uma incomum mudança de posições, sempre em direção ascendente e motivada por seu prestígio público. O relativamente elevado salário pago pela cidade de Arnstadt não o segurou por muito tempo e quando falece o organista da Igreja de São Blásio, em Mülhausen, João Sebastião foi convidado a assumir o posto e aprovado, como único candidato, em 24 de maio de 1707. Mülhausen não lhe ofereceu um posto qualquer.

  Era a segunda maior cidade da Turíngia, uma cidade livre imperial, livre da sujeição a soberanos feudais, com muitos mais recursos. O posto de organista da cidade exigia também a composição de música vocal. É bem provável, por sinal, que a BWV 4, “Cristo jaz nos braços da morte”, tenho sido composta como prova de teste.

  O breve período em Mülhausen – pouco mais de um ano – é marcado por notáveis eventos profissionais. Para começar, João Sebastião conseguiu impor o mesmo salário de Arnstadt, acrescido de várias franquias. Recebia adicionais pelo trabalho em outras igrejas da cidade e o fato de não dispor de uma residência funcional era amplamente compensado pelas atividades musicais em uma cidade mais populosa. João Sebastião aceita, inclusive, dois alunos.

  O período em Mülhausen também produz o primeiro registro formal da atividade de João Sebastião como ‘consultor’ para a construção e reforma de órgãos. Com poucos meses de atividade consegue da cidade a reforma do órgão de São Blásio, um projeto caro – 230 táleres – e que estenderia por muitos meses.

  Por fim, chamado a compor obras vocais, terá a única cantata impressa de sua vida - BWV 71, “Deus é meu Rei”. Composta para a inauguração do Conselho Municipal, “Deus é meu Rei” foi impressa muito antes que Haendel e Teleman tivessem a mesma chance. Não deixa de ser irônico, portanto, que nenhuma outra de suas obras para voz tenha sido impressa em vida.

  O impacto da BWV 71 pode ser também medido pelo fato de que o Conselho de Mülhausen o convidaria para compor peças para a mesma ocasião em1709 e 1710, quando já estava em Weimar. Também pode ser atribuída a esse período a cantata 131, “Das profundezas”, outra obra prima.

  O prestígio crescente de João Sebastião pode ser facilmente avaliado pelo processo de saída de Mülhausen. Em meados de 1708 é convidado para reinaugurar o órgão de Weimar, em uma audiência perante o Duque Guilherme Ernesto. Terminado o evento, é imediatamente convidado pelo Duque para ser Músico de Câmera e Organista da Corte, com salário de 150 florins.
                           
                           Café Haus de Bach em Leipzig

  Bach aceita e comunica ao Conselho de Mülhausen que, mesmo atônito, lhe concede a demissão.

  O rompimento de contrato não deixou mágoas. Bach indica seu sucessor, o primo Ernst Bach, compromete-se a completar a reforma do órgão da cidade e, em 1735, a cidade contratará, para o mesmo posto, seu filho Johann Bernhard Bach. Em visita à cidade, João Sebastião testa o órgão “sem cobrar nada”.

  O período em Mülhausen é muito curto para que lhe possa ser atribuído um impacto maior sobre a obra do Mestre. Compôs ali algumas obras primas importantes, mas ainda dentro de estilo corrente. Ainda assim, quase por acaso, facultou a redação de um dos poucos documentos pessoais pelo seu punho, o memorial em que pede demissão.

  Nele aparece a expressão que se tornará clássica – “uma bem regulada música de Igreja” – informa que a cidade está longe desse ideal e a admite que seguirá para Weimar por buscar melhores meios de sustento.

  Nesses anos, aos vinte e poucos, João Sebastião é um músico de sucesso, recém casado, com ambições bem concretas e talvez fascinado com o extemporâneo convite do Duque de Weimar.

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        6. Weimar e o Músico Ilustrado

  Para um músico de 23 anos, o posto em Weimar – organista e músico de corte – representava um primeiro auge em sua breve carreira. Em termos populacionais, a cidade não era grande, mas o ducado era uma entidade poderosa e culturalmente relevante. Seus soberanos – tratava-se de uma monarquia dual – mantinham uma longa tradição de mecenato e, naquele início de século XVIII, eram homens de cultura e autêntico interesse em música. Os músicos da corte também eram de alto nível, dos instrumentistas à direção musical, comandada pelos Drese, pai e filho.

  João Sebastião tinha, portanto, amplas oportunidades para um diálogo com colegas de prestígio, para o conhecimento da música contemporânea e para a criação musical. Era responsável pela música para órgão e data desse período a maioria de suas composições para o instrumento. Tinha também a atribuição eventual de compor música vocal, mas, sem compromisso com o calendário litúrgico, suas cantatas de Weimar são pensadas para ocasiões gerais, exibindo considerável variação temática. É o caso típico da BWV 54, “Resisti ao Pecado”, , da BWV 199, “Meu coração nada em sangue” ou da BWV 156, “Rei do Céu, sê bem vindo”.

  É em Weimar que emerge, a partir do organista prodígio, o Músico Ilustrado. Dois eventos de crucial importância pertencem a esse momento. O primeiro é o projeto do Pequeno Livro para Órgão, que deveria cobrir, com seus prelúdios, todo o calendário litúrgico de melodias corais. Ele não representa exatamente uma novidade em termos formais, mas exibe características únicas – a qualidade e a economia formal de suas construções, nunca maiores que duas páginas de partitura.

  O Pequeno Livro para Órgão une polifonia e comentário teológico, oferecendo sempre uma visão peculiar sobre cada melodia coral. Para usar a expressão de Albert Schweitzer, nasce o “músico poeta”, que eleva a construção musical de imagens poéticas a um novo patamar expressivo. Como é do conhecimento geral, o Pequeno Livro para Órgão é um projeto inacabado: apenas 46 peças foram compostas e é possível que algumas delas tenham sido acrescentadas posteriormente. Ficou inconcluso por falta de tempo, certamente, e também porque o projeto de uma música para órgão que misturasse elaboração polifônica e comentário teológico continuaria por toda a sua vida. No Pequeno Livro para Órgão estão, em germe, as linhas consagradas, mais tarde, na Missa para Órgão, nos Dezoito, nos corais Schubler: polifonia a serviço de idéias e emoções.

  O segundo evento de crucial importância é a descoberta de Vivaldi.

  Os Duques de Weimar eram soberanos mais globalizados e com recursos suficientes para estar a par das novidades musicais em escala européia. Poucos meses depois da publicação em Amsterdam, o Opus 3 de Vivaldi já estava à disposição da corte ducal e João Sebastião, um hábil violinista ele mesmo, podia tocar as maravilhas de Veneza. O processo de absorção e transformação dos modelos italianos é rápido e intenso. Começa com a transcrição dos concertos para o teclado, passa pelas primeiras experiências de composição ao estilo italiano e chega, ainda em Weimar, às primeiras versões das sonatas e partitas para violino solo. Sob o estímulo da música de Vivaldi, João Sebastião simplesmente deflagra várias correntes criativas, de profundo impacto sobre sua arte e sobre o futuro. Desse ponto de vista, Weimar parecia um paraíso. João Sebastião intensifica sua atuação profissional como consultor na construção e teste de órgãos, começa a firmar reputação como músico para o teclado e encontra no mais novo dos Duques um apoio sólido na corte.

  Nem tudo, porém, eram flores. Após um novo ápice – a nomeação como Mestre de Concertos, em março de 1714 – virão os atritos, a prisão e a transferência para Coethen, uma posição vagamente parecida com uma aposentadoria.


‎      7. Weimar: carreira musical e política de corte

  O prestígio crescente de João Sebastião bem pode ser avaliado pelos próprios eventos de 1714. Convidado a dar seu parecer sobre o projeto de construção de um novo e espetacular órgão na Igreja de Nossa Senhora em Halle (então território prussiano), merece todas as deferências possíveis, como a hospedagem no melhor hotel e reembolso de todas as despesas (inclusive 18 groschen em cerveja ou 32 canecas) e termina sendo convidado a ocupar o posto de organista, sem sequer apresentar sua candidatura.

  Como resposta, a corte de Weimar, em março de 1714, o nomeia Mestre de Concertos, com a atribuição de compor uma cantata por mês e comandar a orquestra da corte. Tudo isso, antes dos 30 anos de idade.

  Havia, porém, o outro lado da moeda. A corte ducal registrava devidamente toda essa agitação profissional, mas não mudava a ordem de precedência entre seus funcionários musicais. Bach ganhava mais que os dois Drese, pai e filho, mas seguia em posição subalterna no organograma da corte. Além disso, quanto o Mestre de Capela João Samuel Drese faleceu, sua substituição passa a ter outro planejamento: Teleman seria convidado para ser o Mestre de Capela Geral de todas as cidades governadas pelos Duques de Saxe-Weimar.

  Ou seja, João Sebastião podia ser um talento reconhecido, mas questões como fidelidade ao posto (como demonstrara a família Drese em Weimar) e renome ‘nacional’ (caso de Teleman) também tinham seu peso.
Não foi a única lição que João Sebastião aprendeu em Weimar. Pertence também ao período seu confronto com o organista francês Louis Marchand, organizado em Dresden em 1717

  O convite da corte de Dresden e a fuga de Marchand, que evitou vergonhosamente a competição com Bach, podem ter feito muito por sua fama e pela sua confiança em sua posição como instrumentista, mas foram acompanhadas por mensagens igualmente importantes.

  Em Dresden, por exemplo, ele certamente ficou a par da escala modesta em que trabalhava. Heinichen, vice-mestre de capela da Corte Eleitoral, ganhava 1200 táleres por ano, mais de três vezes seu salário em Weimar ou Cothen. Antonio Lotti e sua esposa cantora recebiam mais de 10 mil táleres pela composição e performance de óperas italianas.
                        
                          Monumento de Bach em Eisenach

  Por sinal, sejam lá quais foram as razões pelas quais Bach jamais compôs música para ópera, essa decisão foi tomada com pleno conhecimento de suas conseqüências financeiras e profissionais. Não escrever ópera era ficar fora do circuito fashion da música nas cortes alemães e fora também do ‘big money’.

  A decisão de permanecer em Weimar e recusar o convite para Halle, além das questões financeiras, foi, assim, a decisão de aprofundar a carreira como compositor de todo tipo de música e superar a imagem de organista, por mais bem sucedido que tenha sido esse caminho profissional. São anos de produção de obras primas em todos os campos. As cantatas 182, 12, 21, 63, 31, 161 e 61 começam a explorar o gênero da moderna cantata alemã, criada por volta de 1700, mesclando todos os gêneros copiados do madrigal italiano – corais, coros, recitativos, árias, peças orquestrais, dando ao compositor amplas oportunidades de explorar as relações entre poesia e música.

  Weimar também vê o nascimento das grandes obras para o órgão e teclado: 538, 540, 541, 524, a Fantasia Cromática e o início do WTC1. E a lista conhecida pode ser ínfima: com base na comparação entre o papel fornecido pela corte a João Sebastião e o material conhecido, a perda das composições do período pode chegar a 50%! Esse período na vida artística de João Sebastião termina marcado pelo peso das políticas de corte para a música. Os planos para atrair Teleman como super mestre de capela envolviam a transferência de Bach para a corte de Cothen, cujo príncipe passou a ser cunhado do Duque Ernst August. Ou seja, a posição de Mestre de Capela seria negada a Bach em Weimar, mas ele seria “promovido” para a corte de Coethen, com salário maior e onde não seria subordinado a Teleman.

  Os detalhes do arranjo não são conhecidos, mas é certo que Bach não gostou. Suas demandas junto ao Duque de Weimar chegaram ao ponto de uma discussão pública com altos funcionários. A insistência em uma pronta demissão levou, afinal, ao célebre período na prisão. Um sinal claro de que João Sebastião nem se submetia às modas musicais da época, nem tampouco se calava diante dos meandros da política de corte.

‎          8. Interlúdio em Cöthen

  A passagem a Cöthen mostrou-se uma solução adequada após os conflitos na corte de Weimar, mas o prestígio do kapellmeister Bach junto ao príncipe Leopoldo Augusto não escondia os horizontes mais restritos da nova posição. Em termos humanos e estéticos.

  Cöthen era uma cidade pequena, com menos de dez mil habitantes, capital de um principado preponderantemente agrícola, conhecido humoristicamente como “a vaca Cöthen”, um trocadilho inevitável em alemão. A corte de Leopoldo Augusto gastava bastante com música, mas era um principado calvinista, sem uso para música sacra vocal. As cantatas do período foram sempre dedicadas a eventos festivos, como o aniversário do príncipe. É o caso das versões BWV 66a, 134a, 173a, e 184a. A posição em Cöthen também marcaria o fim da carreira oficial de João Sebastião como organista. Tocar e compor para o órgão jamais voltaria a ser uma obrigação profissional.

  Como um largo rio obrigado a correr por um leito mais estreito, a produção musical do período ganha em profundidade. João Sebastião começa a explorar os limites das formas correntes da música instrumental.

  São os anos das partitas e suítes para violino e cello solo, das Suítes Francesas, muito provavelmente das Suítes Orquestrais e dos primeiros concertos para teclado e da música que há de compor o ciclo dos Concertos de Brandenburgo.

 A qualidade e a ambição das obras em compostas em Cöthen muito devem também ao virtuosismo dos músicos que compunham a orquestra da corte. Por um golpe de sorte, Leopoldo teve a chance de contratar muitas das estrelas da orquestra prussiana, desfeita quando Frederico Guilherme I (o pai de Fred II) assumiu a coroa prussiana em 1713.

  Apesar do ambiente favorável, que fez João Sebastião confessar em uma carta posterior o desejo de permanecer “para sempre” ao lado do príncipe Leopoldo, a realidade era bem menos estável.

  O compromisso do soberano com as despesas musicais dependia das contas do Principado, que seriam afetadas por uma disputa de caráter feudal com a ex-regente, mãe de Leopold, pela criação de uma guarda palaciana e por uma nova esposa, cuja ‘mesada’ era maior que todo o orçamento da orquestra. Com o tempo, João Sebastião não conseguia mais autorização para substituir todos os músicos que deixavam Cöthen em busca de outras posições.
                  
                                         Bach Museu em Eisenach

  A família Bach, por fim, era uma família luterana em um principado calvinista. O único local de culto era controlado, seu pastor nem sempre recrutado com critério elevado e a escola luterana não tinha condições de manter uma elevada qualidade de ensino. Essa escassez de meios humanos e materiais teria outra conseqüência trágica: o arquivo público do principado simplesmente desapareceu no curso de sua absorção política pelo Reich e com ele toda a produção musical de Bach oficialmente incorporada ao acervo documental da corte.

  Com base em estimativas grosseiras, calculadas em função dos gastos com encadernação de volumes de partituras, Christoph Wolff considera que cerca de 200 composições de João Sebastião, entre música de câmara e cantatas festivas podem ter sido perdidas.

  A estreiteza da vida em Cöthen teve também impactos na vida pessoal de João Sebastião. O isolamento geográfico estimulava as viagens e por duas vezes ele acompanhou Leopoldo em suas idas à estação termal de Carlsbad. Além de aproveitar as fontes termais, os nobres exibiam suas comitivas e nasceu a tradição de realizar festivais musicais. Em tais eventos, João Sebastião teve a rara oportunidade de apresentar suas composições para um público mais amplo.

  No retorno, porém, de uma das viagens a Carslbad, João Sebastião encontrará sua casa afetada pela tragédia: a morte de sua esposa, Maria Bárbara Bach.

  No curso de outras viagens, dessa vez para recrutar músicos para a orquestra de Cöthen, ele conhecerá uma jovem soprano da família Wilcken, outro clã musical relacionado aos Bach. Por sua recomendação, Ana Magdalena Wilcken é contratada, por um alto salário, como cantora da corte de Leopold August. Pouco tempo depois de instalada em Cöthen, Ana Magdalena recebe o pedido de casamento do Mestre de Capela, dezesseis anos mais velho, e diz sim.

  João Sebastião casou-se com sua diva e Ana Magdalena deixou uma promissora carreira lírica para se casar com o maestro.

  Com o passar dos anos, mais e mais a estada em Cöthen se parecia a um interlúdio. As crescentes dificuldades fiscais da corte, a saúde instável de Leopoldo, a falta de horizontes para os filhos que cresciam começavam a pesar e João Sebastião começa novamente a procurar emprego. Dessa vez, competirá por uma posição de natureza completamente nova, com prestígio secular e caráter semi-acadêmico. Precisará provar que não é apenas um compositor, mas um Mestre.

  A resposta a essa transição profissional, intelectual e musical é, nada mais, nada menos, que o primeiro volume do Cravo Bem Temperado.


         9. Leipzig: a definição de uma personalidade artística 

  Após servir por mais de uma década a soberanos feudais em Weimar e em Cöthen, João Sebastião escolheu um rumo diferente para sua carreira. A disputa pelo posto de Kantor de São Tomás não foi simples nem fácil, Bach foi a terceira escolha do Conselho Municipal. Essas idas e vindas, contudo, nada tinham de fortuitas. O kantorato em São Tomás era o de maior prestígio em todas as terras germânicas, a produção musical na cidade estava em discreta concorrência com a corte eleitoral em Dresden e o Conselho Municipal sempre se dividia sobre a natureza da função – acadêmica ou musical.

  Não é por acaso, portanto, que o antecessor de Bach em São Tomás, Johann Kuhnau, formado em Direito pela Universidade de Leipzig, fosse músico e polímata. A posição de Kantor em São Tomás requeria uma dimensão intelectual própria, tanto pela representação da importância cultural da cidade, como pelas múltiplas relações com a comunidade universitária.

  Por fim, a posição em Leipzig exigia um evidente compromisso pedagógico e o Kantor era, em tese, responsável pelos vários tipos de instrução humanística oferecidos pela Escola de São Tomás.

  Há várias indicações de que João Sebastião encarou esse desafio de uma forma ao mesmo tempo típica e espetacular. Bach não teve condições econômicas de prosseguir em sua educação formal e a falta de um título universitário certamente pesou no processo de seleção do novo Kantor, mas ele respondeu de forma categórica a qualquer dúvida que pairasse sobre sua condição mista de músico, intelectual e professor.

  Nas semanas que antecederam sua escolha e nomeação consolidou sua obra anterior em três documentos exemplares: o Pequeno Livro para Órgão, a Genuína Instrução e o Cravo bem Temperado, cujas páginas iniciais datam precisamente dos anos 1722-1723.

  No Pequeno Livro para Órgão “o iniciante no órgão recebe instruções para o desenvolvimento de um coral em muitas maneiras e ao mesmo tempo adquire facilidade no estudo do pedal uma vez que nos corais nele contidos é tratado como totalmente obbligato. Para o Louvor de Deus e para a instrução do próximo”
         
                           "Bach Organ" Em ThomasKirche, Leipzig.

  A Genuína Instrução (um novo nome para a coleção de peças escritas para a formação de W.F. Bach) se define como “onde os amantes do teclado e especialmente aqueles desejosos de educação têm um claro caminho não somente para (1) aprender a tocar claramente em duas vozes, mas também progredir (2) e lidar corretamente e bem com três partes obbligato; e ainda mais, ao mesmo tempo não somente dispor de boas inventiones, mas desenvolver bem as mesmas e, sobretudo, atingir um estilo cantante no tocar e ao mesmo tempo adquirir um forte aperitivo da composição”.

  Por fim, o Cravo Bem Temperado é apresentado como “prelúdios e fugas em todos os tons e semitons, tanto no que concerne a tertia major ou Do Re Mi como no que concerne à tertia minor ou Re Mi Fa. Para o uso e proveito da juventude musical desejosa de aprender assim como passatempo para aqueles já hábeis no seu estudo”.

  Se o Cravo Bem Temperado representa ou não um projeto iluminista é questão disputada. Não se trata, como se sabe, da defesa do temperamento igual e nem foi apresentado em um formato científico, descrito em detalhes em um tratado. Também não representa uma inovação musical ou intelectual. A idéia, para usar um termo corrente, “estava no ar” desde o início do século XVIII.

  A diferença evidente, portanto, com esforços anteriores de compositores e teóricos não está na qualidade intelectual da fórmula matemático-musical empregada, nem em uma justificação teórica. Está na sua genial qualidade artística.

Esta qualidade artística do Cravo Bem Temperado é que permitirá o salto intelectual da música na direção de um sistema de temperamento racional, abrindo o caminho que lhe facultará explorar todas as modulações possíveis e, portanto, todas as combinações de afetos imagináveis.

Não se pode, contudo, perder de vista o mecanismo pelo qual esse salto será dado: sua surpreendente intenção pedagógica. Aqui talvez esteja a chave da idéia iluminista no Cravo Bem Temperado: a demonstração de que a beleza e a arte podem estar ao alcance de todos, livres de segredos e hermetismos.
                       
               Túmulo de Bach no altar de Thomaskirche.

  O homem que chega à cidade de Leipzig em 1723, implicitamente desafiado a ser artista e professor, músico e mestre, não leva em suas mãos um Tratado em muitos volumes, mas uma Obra, que, ao mesmo tempo, é bela e ensina.

  Sem outras linhas introdutórias do que a intenção de ser destinada "ao uso e proveito da juventude musical desejosa de aprender assim como passatempo para aqueles já hábeis no seu estudo”.


           10. Leipzig: o kantor da Igreja de São Tomás

  Assim como a chegada ao kantorato de São Tomás foi precedida de uma notável consolidação de sua obra musical, materializada na criação do primeiro volume do Cravo Bem Temperado, seus primeiros anos de atividade musical em Leipzig assistiram a um prodígio criativo único na história da arte. De qualquer arte.

  O ofício de Diretor Musical da Escola de São Tomás exigia a execução de música em várias ocasiões religiosas, em vários lugares diferentes, e não se imagina que seu titular apresentasse apenas as suas composições. Não seria humanamente possível e não era a prática histórica em nenhuma instituição semelhante. O Kantor poderia privilegiar suas composições, era suposto que as apresentasse, mas podia contar também com um arquivo extenso, com músicas contemporâneas ou não, dependendo das condições materiais de cada instituição.

  Bach chegava a Leipzig, contudo, após anos afastado da composição de música litúrgica, por conta das restrições religiosas em Cöthen. Não tinha um arsenal extenso de onde retirar suas peças. Sabia também que precisava firmar sua reputação como compositor em uma arena pública de muito maior repercussão.

Respondeu a esse desafio com a criação contínua de quatro (é possível que tenham sido cinco) ciclos anuais de cantatas entre os anos de 1723 e 1729. Como Wolff descreve o processo, João Sebastião começava a compor na segunda-feira e no dia seguinte deveria completar sua tarefa. Na quarta, começava o trabalho de cópia das partes para a orquestra e o coro, sempre à mão. Os dias seguintes eram dedicados aos ensaios para que, no domingo, a nova composição fosse ouvida no intervalo do sermão.

  Semana após semana, por vários anos, a rotina se repetia, sendo humano esperar repetições, fórmulas, atalhos, etc. Uma breve conferência da lista de composições nesses anos mostrará como é injusta tal apreciação. Por vezes, um mês apenas de trabalho concentra obras primas fundamentais, cantatas que, isoladamente, teriam lugar na posteridade, tendo sido criadas no espaço de poucos dias.

  A célebre cantata 147 é apresentada em 2 de julho de 1723, sendo logo seguida pela BWV 186 (11 de julho) e pela graciosa cantata 136 (18 de julho de 1723). Outra jóia, a BWV 199, é de 8 de agosto de 1723 e uma semana depois a Igreja de São Tomás ouve a BWV 69. Ainda no âmbito do primeiro ciclo de cantatas, em 28 de novembro de 1723, soa a cantata BWV 61. Menos de um mês depois é executado pela primeira vez o Magnificat (BWV 243).

O ritmo segue impressionante em 1724. Entre 23 de janeiro e 9 de abril são ouvidas em rápida sucessão as cantatas 73, 81, 83, 18, 23 e a 31. Obras primas entremeadas por composições também criativas e interessantes.

O segundo ciclo anual (1724-1725) também apresenta séries espantosas de criações. Em 1 de abril de 1725, é ouvido o Oratório da Páscoa (BWV244), no dia seguinte a cantata 6 e uma semana depois a cantata 42. 

        
                              Thomaskirche, em Leipzig. ( Panfleto )

  O terceiro ciclo (1725-1727) traz, em seguida, as cantatas BWV 164 (26 de agosto de 1725), BWV 79 (31 de outubro), BWV 110 (Natal de 1725), seguida por BWV 57 e 151 (dias 26 e 27 de dezembro de 1725).

  Do quarto ciclo (1728-1729), do qual já restam menos peças, pode-se destacar, como curiosidade, a passagem entre janeiro e fevereiro de 1729. Dia 23 de janeiro foi ouvida a cantata 156, “Estou a um passo da Sepultura”, com sua célebre sinfonia inicial, de fama secular, e logo a 9 de fevereiro era a vez da BWV 84, “Estou feliz com o que me cabe”.

  E cada ciclo anual de cantatas incluía, além das peças dedicadas a cada dia consagrado pelo calendário de festas religiosas, música para o texto da Paixão de Cristo. Assim, enquanto compunha essas coleções, João Sebastião encontrou tempo ainda para apresentar em 1724 a primeira versão da Paixão Segundo João (BWV 245), repetida, com modificações, em 1725. Em 1726, Bach apresentou uma composição de Friedrich Nicolaus Brauns sobre o texto de Marcos, mas a Semana Santa de 1727 será comemorada com a Paixão segundo Mateus (BWV 244).

  É inútil, no espaço dessa curta biografia, estender-se sobre a natureza dessas obras, mas elas marcam uma culminação que só poderia estar perto do fim. Não era possível, nem fazia sentido prático, continuar nesse ritmo criativo. Com sua contribuição à música litúrgica em Leipzig definida por tais marcos e pressionado pelas condições criadas pela administração municipal, João Sebastião reduz seu esforço criativo. A Paixão segundo São Marcos (BWV 247), composta em 1731, já emprega material retirado de outras cantatas, inclusive seculares.

  Não é exagero afirmar que, após 1730, Bach deixou de ser um compositor de obras para a Igreja. Não é também exagero afirmar, contudo, que havia pouco caminho a trilhar dali em diante. A história da música confirmará essa avaliação.


        11. Leipzig: músico teórico e prático

  Uma vez completada a tarefa de prover a Igreja de São Tomás de um estoque extraordinário de música – o corpus de cantatas, as
Paixões – e sentindo não contar com o apoio do Conselho Municipal para oferecer música na qualidade desejada, João Sebastião avança em várias direções da atividade musical. Consolidará uma obra excepcional em cada uma delas.

  Ainda em 1729, por exemplo, assume a direção do Colégio de Músicos, uma orquestra semi-profissional, composta tanto por virtuoses, como por alunos de São Tomás ou amadores qualificados. O Colégio apresentava-se comumente nos jardins Café Zimmerman e, mesmo que a admissão não fosse paga, os músicos e seu diretor eram, tendo a responsabilidade de atrair a clientela. A impressão de libretos mostra que o público podia passar de 200 pessoas. Nada mal para uma cidade de 30 mil habitantes.

  Bach esteve envolvido com as atividades do Colégio de Músicos até pelo menos 1742 e a massa conhecida de seus concertos para variados instrumentos e muitas cantatas profanas certamente tiveram como primeiro público os freqüentadores do Café Zimmerman. É o caso dos concertos para um, dois e três cravos, que demonstraram a capacidade do instrumento funcionar como solista, e da célebre BWV 212, a Cantata do Café, a única cantata de Bach executada fora de Leipzig.

Talvez esteja na produção musical desses doze anos a maior perda relativa de suas composições. Com base nas escalas de concertos, é possível estimar que Bach tenha apresentado cerca de 500 horas de música. Desse total, apenas uma ínfima parte chegou até o presente.

  Ao mesmo tempo em que testava suas forças como músico profissional, com composições leves e voltadas ao gosto contemporâneo, João Sebastião usava seus talentos para se aproximar da Corte de Dresden e conquistando a proteção política necessária contra qualquer ação do Conselho Municipal.

  São testemunho dessas atividades as várias cantatas profanas dedicadas aos aniversários e sagrações dos monarcas da Saxônia, caso da BWV 213 (“Hércules na Encruzilhada”), da BWV 214 (“Soai tambores, tocai trompetes”) ou a BWV 215 (“Preza tua sorte, abençoada Saxônia).

Essas comissões podiam ter mesmo como destinatários funcionários da corte da Saxônia como Carl Heinrich Dieskau, “Mestre dos Prazeres” do Eleitor e parente de uma célebre amante de Augusto, o Forte. Para comemorar sua ascensão à nobreza foi composta a BWV 212 (“Temos um novo Senhor”), a Cantata do Camponês.

O sucesso dessas composições é inegável. Em 1729, Bach recebe o título de mestre de capela da Corte de Saxe-Weissenfels; e em 1736 o prestigioso título de Compositor da Corte de Dresden, na forma de um diploma assinado pelo Eleitor, Augusto III, e entregue pelo Conde de Kayserlingk, embaixador da Rússia em Dresden. 

             
                               Vitral de Bach, Thomaskirche

  Em 1747, visita a Corte de Berlin por convite direto de Frederico II e em 1749, poucos meses antes de sua morte, está sendo procurado por interessados em comissões, como o Conde Johann Adam von Questenberg, um rico e nobre austríaco com castelos espalhados pela Hungria, Boêmia e Áustria.

  Obras como o Kyrie da Missa em Si Menor (1733) e a Oferenda Musical (1747) têm sua origem nesses eventos cortesãos e mesmo a versão final da Missa, completada em 1749, pode ter sua origem em uma comissão de círculos católicos de Viena.

  Por fim, além da experiência do Colégio de Músicos e do trabalho como músico de Corte, os anos em Leipzig foram marcados pela pesquisa estético-pedagógica. Seja em resposta ao ambiente acadêmico estabelecido pelas relações entre a Escola de São Tomás e a Universidade de Leipzig ou ao crescente debate estético e filosófico sobre música nos círculos de especialistas na Alemanha, João Sebastião inicia em 1731 a publicação dos “Exercícios para o Teclado”, uma série de composições que organizam e consolidam sua abordagem pessoal da composição musical.

  Nessa série estão as Partitas (BWV 825-830); o Concerto Italiano e a Abertura Francesa (BWV 971) publicados em 1735; a Missa para Órgão (BWV 552, 669-689 e 802-805) de 1739 e, por fim, as Variações Goldberg (BWV 988), publicadas em 1741.
Neste conjunto de obras quase teóricas e profundamente didáticas podem ser incluídos, naturalmente, o Segundo Volume do Cravo Bem Temperado e a Arte da Fuga (BWV 1080), publicada postumamente, em 1751.

  Tal como no caso das Paixões, não fez sentido tentar descrever o conteúdo dessas obras no espaço de poucas linhas. Talvez baste afirmar que elas consolidam quase todas as técnicas de composição, a música para o teclado, a forma das variações, a elaboração dos corais e a maestria do contraponto. Obras sem iguais, antes e depois.
A morte chegou para João Sebastião Bach em 28 de julho de 1750, como conseqüência de infecções causadas por uma cirurgia ocular, bem sucedida apenas ao amenizar os efeitos de uma catarata.

  Ela encontrou um artista que, aos 65 anos de idade, vivia uma época gloriosa de sua existência: um compositor que começava a ter reconhecimento dos meios aristocráticos da Alemanha, que via seus filhos compositores empregados em posições de relevo, que vencera seus conflitos profissionais e era um participante ativo nos debates estéticos e musicais de seu tempo e que conseguira casar sua filha. Muito mais poderia ter feito nessa vida.


                                                   

 

 


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